Delação premiada

AutorAdriano Squilacce - Nair Maurício Cordas
CargoAdvogados
Páginas15-28

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Introdução

No contexto da projecção (inclusivamente internacional) que o recurso à delação premiada teve no Brasil, houve quem, em Portugal, tenha incentivado, sem reservas e hesitações, a consagração legal do instituto da delação premiada no nosso ordenamento jurídico.

Quando confrontados com a mais do que evidente incompatibilidade do modelo brasileiro da delação premiada com a Constituição da República Portuguesa (CRP), alguns defensores deste instituto vieram esclarecer que, afinal, não pretenderiam importar o modelo brasileiro de delação premiada para Portugal, mas sim consagrar um modelo de delação premiada com contornos próprios, ainda que não os especifiquem.

É natural que a ideia da delação premiada seduza os investigadores (que são, humana e compreensivelmente, influenciados pelo contexto que os rodeia, nomeadamente em casos com maior projecção mediática) para a sensação de uma aparente vitória, por estarem convencidos que, no momento da acusação, a delação premiada terá permitido reunir indícios suficientes que permitam sustentar que a condenação em julgamento é mais provável do que a absolvição.

Esta sedução ou sensação de vitória que a delação premiada provoca será tanto maior quando os Magistrados do Ministério Público que investigam e acusam não são aqueles que participarão no julgamento, porque o trabalho (individual) daqueles que investigam culmina com a dedução da acusação.

O problema é que as grandes delações que criam a ilusão de uma grande condenação são as mesmas delações que podem dar lugar a grandes absolvições, quer por assentarem em verdadeiros negócios

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com delatores que praticaram crimes e cuja credibilidade está necessariamente abalada, quer por força de invalidades na forma como a prova foi obtida.

Sem prejuízo disto, a discussão sobre a delação premiada não se deve restringir à perspectiva de iure condendo (i.e., do direito a ser constituído no futuro). Esta é uma excelente oportunidade para reavaliar, de forma sincera e crítica, certas opções práticas na condução das investigações que consubstanciam verdadeiros mecanismos premiais encapotados que são vedados quer pelo Código de Processo Penal (CPP), quer pela CRP. Aliás, no actual estado de coisas, a discussão do problema nesta segunda perspectiva é muito mais importante do que a primeira, porque se trata de enfrentar, com transparência, questões com que os diversos intervenientes no processo são confrontados, sobretudo na fase de inquérito ou investigação do processo.

O erro de reconduzir a discussão a uma divergência entre duas facções

Antes de entrar no fundo deste problema, importa desmistificar uma confusão ou um pré-conceito errado que, aparentemente, tem estado subjacente a esta discussão. Alguns apresentam esta discussão como uma divergência entre duas «facções», cujas posições seriam orientadas pelos seus interesses: por um lado, os investigadores que apoiariam a delação premiada e, por outro lado, os Advogados que se oporiam a este instituto.

No entanto, esta divisão assenta num erro elementar e de base: o erro de que os advogados apenas interviriam como defensores de arguidos. Como é evidente, não é assim. Até porque a lei assim o obriga, os assistentes são sempre representados por advogados (artigo 70.º, n.º 1, do CPP). Portanto, os advogados, quando actuam enquanto representantes dos assistentes, têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção, ressalvadas algumas excepções previstas na lei (artigo 69.º, n.º 1, do CPP).

Esta dimensão ganha ainda uma maior importância nos casos em que a legitimidade para a constituição de assistente pertence a qualquer pessoa, como sucede, a título de mero exemplo, nos crimes de tráfico de influência, corrupção, peculato, participação económica em negócio ou desvio de subsídio ou subvenção (artigo 68.º, n.º 1 - al. e), do CPP).

De resto, mesmo nas jurisdições que consagram o instituto da delação premiada, já se assistiu a uma especialização de um determinado sector da advocacia na representação de suspeitos da prática de ilícitos que exerceram o papel de delatores e de whistleblowers.

Portanto, a ideia de que a discussão sobre a delação premiada é uma controvérsia entre o Ministério Público e advogados, na qual estes se orientariam contra a delação premiada em função do interesse egoístico de proteger os arguidos, é um raciocínio incorrecto e que está viciado à partida.

É que os advogados que actuam como defensores hoje são os mesmos que, amanhã, actuarão como assistentes e vice-versa.

Feita esta desmistificação, importa passar ao fundo da questão.

O estado actual

Na sequência da obra publicada em 2011 por Figueiredo dias, intitulada «Acordos sobre a sentença em processo penal - O Fim do Estado de Direito ou um Novo Princípio», inspirada na alteração introduzida em 2009 à lei que rege o processo penal alemão (a StPO), assistimos, entre nós, a um movimento com vista à implementação e aceitação dos chamados acordos sobre sentença em Portugal, em nome da defesa do Estado de Direito.

A via negocial rapidamente começou a ganhar adesão dentro do Ministério Público, primeiro, na Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, que emitiu uma orientação na qual incentivava a criação de procedimentos para a implementação dos acordos sobre sentença (cfr. Orientação n.º 1/2012, da Procuradoria Geral Distrital de Lisboa, de 13 de Janeiro de 2012 - disponível em www.pgdlisboa.pt), a que então se associou o Procurador-Geral Distrital de Coimbra (cfr. memorando de 19 de Janeiro de 2012, disponível em www.oa.pt).

Foi neste contexto que se seguiram duas decisões jurisprudenciais de tribunais de 1.ª instância que aplicaram acordos sobre sentença em processo penal, às quais se seguiu o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Abril de 2013, no qual a validade da negociação de penas foi expressamente rejeitada.

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Abril de 2013, foi muito claro, tendo aí sido entendido o seguinte:

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I - O direito processual penal português não admite os acordos negociados de sentença. II - Constitui uma prova proibida a obtenção da confissão do arguido mediante a promessa de um acordo negociado de sentença entre o Ministério Publico e o mesmo arguido no qual se fixam os limites máximos da pena a aplicar

(processo n.º 224/06.7GAVZL.C1.S1, disponível em www. dgsi.pt).

Por sua vez, e na sequência da publicação deste Acórdão, foi emitida a Directiva n.º 2/2014 pela Procuradora-Geral da República, na qual se proibiu o incentivo e a celebração de acordos sobre sentença em processo penal, atendendo à necessidade de aprofundamento da reflexão sobre o instituto (cfr. Directiva n.º 2/2014, da Procuradoria Geral da República, de 21 de Fevereiro de 2014 - disponível em www.pgr.pt).

Embora o aludido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Abril de 2013, não se reporte especificamente a uma situação de delação premiada, à luz da legislação vigente, é hoje claro que o recurso ao instituto da delação premiada, na vertente contratual ou negocial, não é permitida. Aliás, é precisamente por esta circunstância que os simpatizantes desta modalidade de delação premiada reclamam a alteração do CPP.

Toda a negociação que chega a bom porto envolveu uma determinada promessa, enquanto contrapartida de um determinado acto ou prestação. Com o sucesso da negociação, a promessa transforma-se num compromisso.

No caso da delação premiada, pressupõe-se a existência de um prémio que é definido antecipadamente (por ex., a dispensa da pena pré-determinada, antes de qualquer julgamento) e constitui a contrapartida, concreta e segura, de uma delação feita por um arguido, após uma negociação bem sucedida com as Autoridades Judiciárias.

No entanto, o CPP determina que a promessa de vantagem legalmente inadmissível é ofensiva da integridade moral das pessoas e, nesta medida, constitui um método de prova proibido (artigo 126.º, n.os 1 e 2 - al. e), do CPP), o que proíbe a delação premiada, na medida em que não é possível prometer, antecipadamente e de forma pré-determinada, a um arguido a atribuição de uma vantagem específica, como contrapartida da sua colaboração. O n.º 2 do artigo 126.º do CPP determina a proibição absoluta deste método de obtenção de prova, mesmo em caso de haver consentimento do arguido, por

estar em causa a ofensa da integridade moral das pessoas (o que resulta claro da expressão «mesmo com que com o consentimento» que consta desta norma).

Por referência à proibição de «promessa de vantagem legalmente inadmissível», inês Ferreira Leite salienta o seguinte: «no sistema português, o recurso a meios mais "expeditos" de obtenção de confissões - tais como, a promessa de isenção ou atenuação da responsabilidade criminal, a promessa de privilégios injustificados no cumprimento da pena (...) - é proibido e importa a nulidade absoluta das provas assim obtidas (...). (...) na obtenção de declarações do arguido que possam constituir um meio de prova, as autoridades judiciárias podem fazer referências aos benefícios substantivos e processuais decorrentes de uma "colaboração processual" útil por parte do arguido ou de um "arrependimento sincero", mas nunca sob a forma de promessas concretas no que respeita aos precisos contornos da responsabilidade penal do mesmo ou da pena ou medida a aplicar, a final (ou, inversamente, sob qualquer forma de ameaças)» («Arrependido»: A Colaboração Processual do Co-arguido na Investigação Criminal, in

  1. Congresso de Investigação Criminal, Almedina, 2010, páginas 393 e 394).

Como vimos, o aludido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Abril de 2013, não se reporta...

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