Da Materialidade do Incumprimento

AutorPedro Ferreira Malaquias - Manuel Barbosa Moura
Páginas19-30

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1. Introdução

Fruto de séculos de evolução, assume grande relevo na sociedade contemporânea em que nos inserimos a figura do financiamento através de capitais alheios, ou, fazendo uso da sua expressão mais comum: o empréstimo. Com efeito, é deveras banal o recurso a este tipo de financiamento, seja por pessoas singulares ou por empresas, para fins específicos ou pura e simplesmente para a capacitação financeira da pessoa que ao empréstimo recorre 1.

Neste artigo, o interesse de que se reveste esta temática resulta daquele que é um dos principais denominadores comuns da invocação do Direito: a ocorrência de litígios (especificamente, a figura do incumprimento). Neste artigo iremos analisar o incumprimento nos contratos de financiamento e a materialidade que o mesmo poderá assumir no respetivo quadro contratual. Centraremos o exame dos problemas subjacentes àquelas que são as situações mais comuns de contratos de financiamento, o que, considerando o nosso ordenamento jurídico e a tradição na nossa sociedade civil, inevitavelmente

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redundará na abordagem do financiamento inserido na prática bancária.

Product of several centuries of evolution, it is of the utmost relevance in our society the phenomenon of debt financing, or, in its most common designation: the loan. In fact, both natural persons and companies very often use this kind of financing, either for specific purposes or merely for their own general financial empowerment. In this article, the interest around this theme results from an issue which is one of the common denominators of Law’s summon: the occurrence of litigation (specifically to our case: the figure of non-compliance). In this article we will study the non-compliance of some financing contracts and the materiality that such non-compliance may assume within the respective contractual framework. We will focus the analysis of the underlying problems in the most frequent situations of non-compliance of financing contracts, which, considering our legal system and our civil society’s tradition, will inevitably lead to the approach of the financing contracts inserted in the banking practice.

2. A resolução por incumprimento no direito português 2
2.1. A resolução legal por incumprimento contratual
2.1.1. O incumprimento como pressuposto fundamental

A resolução do contrato, cuja previsão legal encontra a sua sede no artigo 432.º do Código Civil 3, apresenta-se no nosso ordenamento jurídico como um instituto autónomo que consubstancia um «meio de extinção do vínculo contratual» 4 cujo exercício, condicionado pela verificação de motivo legal ou convencional que o legitime, poderá ser efetivado através de declaração unilateral à contraparte (artigo 436.º, n.º 1 do CC). Ora, de acordo com o disposto no artigo 432.º, n.º 1 do CC, percebemos que são consagradas duas modalidades de resolução contratual: a resolução legal e a resolução convencional. Atenta esta configuração, parte da doutrina vê na resolução contratual «um direito potestativo extintivo dependente de um fundamento» 5.

Com efeito, a resolução legal 6 funda-se na verificação de um motivo para o qual a respetiva previsão legal comina o direito de resolução a favor de uma das partes. Neste contexto, o facto ou fundamento que gera o direito resolutivo na esfera jurídica de uma das partes é o «facto de incumprimento ou situação de inadimplência» 7 cuja respetiva averiguação resultará da consideração sobre a conformidade da execução, ou a falta dela, de acordo com o conteúdo contratual prescrito para determinada obrigação. Consequentemente, qualquer «desvio entre a execução do contrato e o programa negocial constitui um inadimplemento» 8, o que, em sede de contratos bilaterais (ou sinalagmáticos), gera na contraparte (a parte fiel) o direito potestativo de resolução independentemente do direito à indemnização - como resulta do disposto no artigo 801.º, n.º 2 do CC 9.

2.1.2. Incumprimento de obrigações secundárias e/ou deveres acessórios

Já vimos que o direito resolutivo nasce na esfera jurídica de uma das partes em função do incumprimento pela contraparte do conteúdo contratual em questão. Não basta porém esta premissa, colocando-se ainda a questão da materialidade do incumprimento em causa, ou seja, que grau de incumprimento poderá fundamentar o direito à resolução do contrato.

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Ora, no âmbito das relações obrigacionais derivadas dos contratos podemos, regra geral, fazer a destrinça dentro do quadro contratual de modo a encontrar a obrigação principal que, normalmente, define «o tipo ou o módulo da relação» 10. Quanto a esta obrigação, a obrigação principal 11, não oferece dúvidas a cominação do direito resolutivo para o seu incumprimento, uma vez que esta encontra-se no eixo da relação contratual e a falta ao seu cumprimento representa o mais relevante e significativo desvio ao programa negocial definido pelas partes. É, pois, relativamente ao incumprimento das obrigações secundárias 12 e/ou deveres acessórios 13 / 14 que se discute com maior controvérsia a relevância e consequente materialidade do incumprimento, questionando-se se o mesmo gera ou não na contraparte (a parte fiel) o direito à resolução do contrato 15.

Em matéria de cumprimento das obrigações podemos, face ao enquadramento legal em que o mesmo se insere no CC, enunciar a consagração de três princípios fundamentais que são os pilares desta matéria: o princípio da boa fé (artigo 762.º, n.º 2), o princípio da pontualidade (artigos 406.º, n.º 1 e 762.º, n.º 1) e o princípio da integralidade (artigo 763.º). Como tal, são estes os três vetores a que deverá obedecer o cumprimento de determinada obrigação, considerando-se haver incumprimento da obrigação quando a atuação que visava o cumprimento não tenha respeitado qualquer um destes três princípios 16.

Por conseguinte, decorre do que foi exposto a conclusão de que o direito resolutivo poderá nascer do incumprimento de qualquer obrigação, quer se trate ou não de uma obrigação principal do contrato. Com efeito, o incumprimento de uma obrigação consubstanciará sempre, seja esta principal ou secundária, um desvio ao programa negocial definido pelas partes, variando na sua amplitude e consequente relevância, mas representando sempre uma situação de incumprimento contratual, que, como sabemos, é o pressuposto fundamental do direito resolutivo. Ora, esta conclusão é defendida pela doutrina maioritária, entendendo-se que o incumprimento que fundamenta a resolução do contrato

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pode respeitar a qualquer tipo de obrigação 17 / 18 / 19 / 20.

Contudo, e apesar do incumprimento ser o pressuposto fundamental para a resolução do contrato, encontramos, para além deste, outros pressupostos de que depende o surgimento do direito de resolução na esfera jurídica da parte fiel.

2.1.3. A «escassa importância» do incumprimento

O primeiro pressuposto adicional alvo de abordagem respeita à relevância do facto de incumprimento ou situação de inadimplência, ou seja, prende-se com a sua importância para o credor da obrigação e, consequentemente, com a relevância do incumprimento no quadro contratual. Com efeito, nesta matéria podemos encontrar uma previsão legal clara e inequívoca quanto à sua natureza: estamos aqui perante um pressuposto de verificação negativa, não valendo, por conseguinte, como pressuposto do direito de resolução o incumprimento que «tiver escassa importância» 21 (artigo 802.º, n.º 2 do CC) 22.

Apesar deste pressuposto ser consagrado no âmbito da impossibilidade parcial da prestação (artigo 802.º do CC), a norma constante do n.º 2 desta disposição «encerra um princípio geral da resolução dos contratos» 23, sendo comummente defendido pela doutrina que a «escassa importância» do incumprimento obsta ao surgimento do direito de resolução na esfera jurídica da contraparte (a parte fiel) por se afigurar desadequada (e desproporcional) a extinção do vínculo contratual em função de um desvio irrelevante ao programa negocial definido pelas partes 24.

Questão subjacente é a que respeita ao método através do qual é apreciada a importância do incumprimento, em relação à qual, e atenta a manifesta inter-ligação entre as matérias, remetemos o respetivo estudo para o ponto seguinte.

2.1.4. A gravidade do incumprimento e a adequação da resolução

Decorre do que ficou dito a propósito da «escassa importância» do incumprimento que, para que o incumprimento possa gerar o direito resolutivo é necessário que aquele se revista da necessária gravi-dade 25 para que a resolução do contrato se afigure uma reação que comporte uma solução adequada, estabelecendo-se a devida proporcionalidade entre o incumprimento e a extinção do contrato através da resolução. A exposição deste duplo pressuposto indicia aquele...

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