Prevalência de créditos laborais face à hipoteca?

AutorJosé Pedro Anacoreta; Rita García E Costa
CargoAbogados del Área de Fiscal y Laboral, y del Área de Procesal y Derecho Público, respectivamente, de Uría Menéndez
Páginas41-52

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1 · Introdução

O Código do Trabalho, ao conceder uma nova garantia aos créditos laborais, procurava pôr termo a uma querela doutrinal e jurisprudencial que durava há vários anos, no que diz respeito à forma de graduação dessa mesma garantia quando em concurso com outros créditos com garantia real. No entanto, a solução adoptada não está harmonizada com a natureza e regime dos privilégios creditórios prevista no Código Civil, assim como não resolve um problema de conflito entre dois princípios com igual dignidade constitucional. Impunhase ao legislador do Código do Trabalho encontrar uma forma de harmonização entre o princípio da confiança inerente ao Estado de Direito Democrático e o direito à retribuição do trabalho. Se, por um lado, é necessário dotar o tráfego jurídico da segurança necessária para incentivar a iniciativa económica, que conduz à criação de emprego e à melhoria das condições de vida dos cidadãos, por outro lado, o Estado não pode deixar de conferir aos trabalhadores, cujos créditos laborais ainda não foram satisfeitos, uma posição privilegiada no momento da liquidação do património das empresas insolventes. O legislador optou por conferir prevalência a determinados créditos laborais sobre outros direitos reais, nomeadamente sobre o crédito garantido por hipoteca.

Acontece que esta solução suscita enormes reservas, tanto em termos de técnica legislativa, como em termos de respeito por valores constitucionais susceptíveis de protecção jurídica. A fim de tomar uma posição sobre a constitucionalidade da solução adoptada, importa analisar previamente a natureza dos privilégios creditórios, bem como fazer uma referência sobre a evolução, quer da legislação, quer da jurisprudência relativa a este tema.

2· Os privilégios creditórios
2. 1· Natureza jurídica dos privilégios creditórios

De acordo com o disposto no artigo 733.º do Código Civil, o «Privilégio creditório é a faculdade que a Lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros». Da análise deste artigo resultam, desde logo, quatro características indiscutíveis deste tipo de garantia especial das obrigações, nomeadamente: (i) carácter legal, (ii) acessoriedade do crédito, (iii) indivisibilidade e (iv) carácter oculto.

A primeira dessas características é o modo da sua constituição, que terá de ser necessariamente conferido por lei. Tratando-se de uma preferência de pagamento resultante da natureza do crédito, os privilégios creditórios não são susceptíveis de serem criados por negócios jurídicos, mas tão-somente por lei que lhes confira tal faculdade de preferência no pagamento relativamente a outros créditos.

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Em segundo lugar, os privilégios creditórios caracterizam- se pela sua acessoriedade em relação ao crédito que garantem. Com efeito, os privilégios creditórios estão dependentes da natureza do crédito cujo cumprimento visam assegurar, estando a sua existência condicionada à do direito de crédito garantido. Daí que, extinguindo-se o crédito, extinguir- se-á, necessariamente, o privilégio, salvo algumas excepções 1.

Em terceiro lugar, poder-se-á dizer que os privilégios creditórios são indivisíveis, isto é, em princípio, o privilégio creditório assegura o cumprimento integral da prestação a que está interligado, independentemente de recair sobre vários bens 2, assegurando também a qualidade de credor privilegiado a todos aqueles a quem, por lei, for atribuído tal privilégio 3.

Por último, os privilégios creditórios têm um carácter oculto, considerando que produzem os seus efeitos independentemente da sua inscrição no registo. Assim, não estando sujeitos a publicidade, e sendo pagos com preferência a outros credores, de acordo com a ordem de graduação de créditos que analisaremos adiante, estes privilégios podem conduzir a que os demais credores vejam defraudadas as suas legítimas expectativas, principalmente, no que diz respeito aos credores com garantias reais. Daí, a razão por que vários Autores têm pugnado pela declaração de inconstitucionalidade de vários tipos de privilégios creditórios, como também teremos oportunidade de ver posteriormente.

Acresce que, estas características que ressaltam da norma geral nem sempre têm uma aplicabilidade directa às várias espécies de privilégios. Com efeito, o ordenamento jurídico português prevê dois tipos de privilégios: os mobiliários e os imobiliários. Os privilégios são designados mobiliários quando incidem sobre bens móveis, e imobiliários quando incidem sobre bens imóveis. De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 735.º do Código Civil, os privilégios mobiliários podem ser gerais ou especiais, consoante incidam sobre a totalidade do património do devedor, ou apenas sobre um determinado bem que esteja relacionado com o próprio crédito. Já os privilégios imobiliários, na versão original do Código Civil de 1966, eram sempre considerados especiais 4.

Efectuada a distinção entre os vários tipos de privilégios previstos no Código Civil, importa, antes de mais, analisar os pontos em comum e as diferenças entre cada tipo de privilégio. Um dos pontos comuns entre as duas espécies de privilégios, gerais e especiais, é o facto de serem ambas figuras reentrantes na categoria das garantias reais das obrigações, na medida em que pressupõem a afectação de bens do devedor ou de terceiro ao pagamento preferencial de determinadas dívidas 5.

No entanto, várias são as diferenças apontadas pela doutrina aos vários tipos de privilégios, consoante se tratem de privilégios gerais ou especiais. Para uma melhor compreensão dessas diferenças, importa ter presente o regime legal aplicável a cada espécie de privilégio quando em concurso com outros direitos de terceiros. Assim, dispõe o artigo 749.º do Código Civil que «O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente» 6. Quer isto dizer que, constituindo-se o privilégio geral com a efectivação da penhora ou de acto equivalente, não será aquele oponível a direitos especiais que prefiram ao direito geral do exequente, nomeadamente a qualquer direito real de gozo ou de garantia. Neste sentido, quando em concurso com direitos especiais de terceiros que prefiram à penhora, os privilégios gerais serão graduados posteriormente e, consequentemente, pagos depois desses créditos garantidos.

Esta norma legal assenta no facto de os privilégios gerais serem conferidos a certos credores tendo em conta especiais características desse credor ou do próprio crédito, e não estarem directamente relacionados com a coisa que garantem. De facto, no Código Civil encontramos enumerados vários tipos de Page 43 privilégios mobiliários gerais, tais como (i) os créditos do Estado e das autarquias locais por impostos indirectos, (ii) os créditos por despesas de funeral do devedor, (iii) os créditos por despesas com doenças do devedor ou de pessoas a quem este deva prestar alimentos, (iv) os créditos por despesas indispensáveis para o sustento do devedor e das pessoas a quem este tenha a obrigação de prestar alimentos e (v) os créditos emergentes do contrato de trabalho, ou da violação ou cessação desse contrato 7. Do regime previsto no Código Civil resulta, assim, que os privilégios mobiliários gerais garantem dívidas especialmente relacionadas com certo e determinado crédito, garantindo os bens do devedor, e só deste, a satisfação integral daquele crédito. Para os privilégios mobiliários especiais, estatui o artigo 750.º do Código Civil que, em caso de confronto com outros direitos de terceiros, deverá prevalecer, salvo convenção em contrário, aquele que se houver constituído mais cedo. Assim, para esta espécie de privilégios, aquando da graduação de créditos, assume especial relevância a data da constituição dos respectivos créditos.

Ao contrário do que sucede com os privilégios mobiliários gerais, os privilégios mobiliários especiais relacionam-se directamente com a coisa que garantem, isto é, os privilégios recaem directamente sobre a coisa e não sobre o devedor, existindo entre a coisa e o crédito garantido um elo de ligação inatacável. A título de exemplo, prevê o Código Civil a atribuição de um privilégio mobiliário especial aos créditos derivados de (i) despesas de justiça, (ii) de imposto sobre as sucessões e doações (actual Imposto de Selo), (iii) de indemnizações, (iv) de obras intelectuais fundadas em contrato de edição, etc. 8 Estes privilégios afectam bens relacionados com a origem dos créditos garantidos, incidindo (i) sobre as coisas que originaram as despesas de justiça, (ii) sobre os bens móveis transmitidos, (iii) sobre a indemnização devida pelo segurador da responsabilidade e, (iv) sobre os exemplares da obra em poder do editor.

Já os privilégios imobiliários, que -repita-se- na versão original do Código Civil eram sempre considerados especiais, «são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores» 9, ou seja, os privilégios imobiliários especiais prevalecem sobre qualquer direito real de gozo ou de garantia, independentemente do momento da constituição da garantia e do privilégio. Este regime de...

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