O controlo do Poder Judicial em Portugal entre a Idade Média e a Idade Moderna

AutorJosé Dominguez
Páginas21-39

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José Domingues

Universidade Lusíada - Norte (Porto)

Introdução

Ao contrário do que nos revela um passado jurídico carregado de séculos, na atualidade, o poder judicial em Portugal está isento de qualquer controlo ou fiscalização externa, gozando de uma elevada garantia de imunidade em relação a outros poderes e à censura dos próprios cidadãos. Carecendo de legitimidade democrática direta, a expressão do exercício da justiça popular é meramente residual (art. 207º CRP) e, na prática, inexistente. O mitigado controlo do atual poder judicial terá derivado da premente necessidade da sua independência1, que —a par dos ideais de soberania nacional, governo representativo, separação de

* Abreviaturas de coleções legais utilizadas: CRP = Constituição da República Portuguesa (texto originário de 1976, atualizado até à última revisão de 2005) [Disponível em: http://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx (consultado 05/09/2017)]; OA = Ordenaçoens do Senhor Rey D. Afonso V, Coimbra, Real Imprensa da Universidade, 1792 (fac-simile da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1984/1998) [Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/ (consultado 05/09/2017)]; OM-1512/13 = Ordenações Manuelina: Livros I a V: Reprodução em fac-símile da edição de Valentim Fernandes (Lisboa, 15121513), com Introdução de João José Alves Dias, Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 2002 -os livros I e II disponíveis em http://purl.pt/14876 (consultado 05/09/2017)]-; OM-1514 = Liuro primeiro a quinto das Ordenações, Nouamente corrigido na segunda empressam, Lisboa: Ioham Pedro Bonhomini, 1514 [Disponível em: http://digi-tarq.arquivos.pt/details?id=4567147 (consultado 05/09/2017)]; OM-1521 = Ordenaçoens do Senhor Rey D. Manuel, Coimbra, Real Imprensa da Universidade, 1797 (fac-simile da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1984) [Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/manuelinas/ (consultado 05/09/2017)]; OF = Codigo Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal recopiladas por mandado d'El-Rey D. Philippe I, por Candido Mendes de Almeida, Rio de Janeiro, Typographia do Instituto Philomathico, 1870 (fac-simile da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1985) [Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm (consultado 05/09/2017)]; P = Las Siete Partidas del Sabio Rey don Alonso el nono, nueuamente Glosadas por el Licenciado Gregorio Lopez del Consejo Real de Indias de su Magestad, con su repertorio muy copioso assi del Testo como de la Glosa, Impresso en Salamanca por Andrea de Portonaris, Impressor de su Magestade, Año M. D. L. V (1555). Outras abreviatiras utilizadas: v. g. = verbi gratia (por exemplo); i.e. = id est (isto é); Dig. = Digesta e Inst. = Instituta, Corpus Iuris Civilis, Paul Kruger e Theodor Mommsen (ed.), 1872-1895.

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poderes, direitos individuais, sujeição do poder político à Constituição e do poder executivo à lei- constitui uma das traves mestras carreadas pelo constitucionalismo liberal dos séculos XVIII e XIX2.

A independência dos juízes, como elemento clássico da teoria da separação de poderes, é conditio sine qua non da sua imparcialidade e, nesse sentido, um pressuposto indispensável para a concretização da própria ideia de justiça e uma magna garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos perante os poderes públicos. Na Súplica de 1808 já se solicita uma Constituição "em que o poder judicial seja independente"3. Tal independência vai surgir expressamente positivada na Carta Constitucional de 1826 (art. 118º: "O poder judicial é independente")4, à semelhança do que, século e meio depois, será consagrado pela Constituição vigente (art. 203º CRP: "Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei"). Ao longo dos dois últimos séculos de constitucionalismo foi-se formando à sua volta uma vasta e densificadora garantia constitucional, v. g., quanto ao recrutamento dos juízes, mandato vitalício, inamovilidade, irres-ponsabilidade e exclusividade de funções (arts. 215º e 216º CRP).

Tentando paliar a ausência de um heterocontrolo, sem ofender a necessária independência dos tribunais, a revisão constitucional de 1982 (com versão textual definitiva fixada pela revisão constitucional de 1997) veio constitucionalizar a vetusta obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais: "as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista

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na lei" (art. 205º, n.º 1 CRP)5. Sem embargo de se acreditar que a fundamentação das decisões judiciais possa servir de lastro legitimador para o poder judicial (legitimação pelo exercício de funções), uma vez que que não goza de legitimidade democrática6, a verdade é que, para a questão que aqui nos ocupa, estamos perante um mero autocontrolo. E, como tal, torna-se de eficácia muito duvidosa em relação à "parte neoplásica" -que sempre existiu e, na verdade, é a única que importa controlar- dos magistrados menos aptos, menos prudentes ou pouco cumpridores. A questão torna-se inescusável: como opera ou qual a eficácia da garantia constitucional contra uma eventual decisão judicial inconstitucional por falta ou má fundamentação quando, no nosso ordenamento jurídico, nem sequer existe recurso de amparo ou de constitucionalidade e as decisões judiciais não são suscetíveis de fiscalização da constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional?

Por brevidade de tempo e para não fugir à proposta de investigação assumida em título, a atualidade do tema terá que ficar por aqui, limitada por esta singela questão. Sem, no entanto, deixar de salientar que o controlo do poder -seja ele judicial ou de qualquer outra índole- é, não só, uma questão atual, mas sobretudo, uma questão transversal a todos os tempos e a todos os povos politicamente organizados. A limitação do poder é, no fundo, a magna quaestio do Direito Constitucional. Assim sendo, estes breves prolegomena servem, apenas, para aproximar à hodiernidade constitucional o tema do controlo do poder judicial durante o curso dos séculos XIII a XVI, que vai ser abordado nas linhas que se seguem. Fazendo jus às doutas palavras de Gustavo Zagrebelsky:

"la dimensión histórica del derecho constitucional no es entonces un accidente anecdótico, algo que satisfaga solamente nuestro gusto por las antigüedades o la curiosidad por las realizaciones del espíritu humano. Podría ser un elemento constitutivo del derecho constitucional actual, lo que le permitiría dar un sentido a su obra cuando la ciencia del derecho constitucional se decidiera a comprender que no existe un amo que requiera ser servido, al contrario de lo que sucedía alguna vez"7.

O despretensioso objetivo deste trabalho resume-se a uma sumária aproximação à implementação e mutações sofridas pelo controlo post officio dimisso -deixando de fora outros mecanismos de controlo não menos importantes como, v. g., correição, queixa, denúncia, petição, sindicâncias extraordinárias, temporalidade e limitação de mandatos, etc.- a partir de uma aturada demanda pelos pergaminhos medievais e cotejo com a legislação compilada nas sucessivas Ordenações do reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas). Antes de mais, com os parcos subsídios escritos que foi possível coligir importa apurar se, tal como se está a difundir, o controlo dos juízes em Portugal é um instituto tributário do Ius commune, mormente por via indi-reta das Sete Partidas de Castela, ou se, bem pelo contrário, se trata de um procedimento jurídico autóctone e proprium do reino de Portugal.

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Partindo deste pressuposto foi possível separar duas tipologias de controlo distintas: a inquirição devassa, um procedimento com os contornos singulares de um instituto autóctone, agasalhado com as roupagens de um Iusproprium; e a residência, com um conteúdo demarcado pela influência do Ius commune e pela importação de algumas determinações legais castelhanas. Durante o período da Baixa Idade Média portuguesa esteve em vigor um regime de controlo identificado como inquisição, inquirição, devassa ou inquirição devassa. Este segundo mecanismo de controlo vai-se manter para determinados oficiais, mas, em relação aos corregedores de comarca, ouvidores e juízes de fora, paulatinamente, a partir dos inícios do século XVI, a inquirição tende a ser suplantada pelo juízo de residência. As Ordenações Filipinas pretenderam desferir o golpe de misericórdia ao legado medieval, acabando com qualquer referência às inquirições e limitando-se a consagrar o juízo de residência para os magistrados letrados. Mesmo assim, a verdade é que as compilações legislativas modernas não conseguiram apagar o considerável lastro medieval deixado pela legislação das inquirições, que eram feitas no término legal do exercício dos cargos de justiça.

Em suma, esta pesquisa permitir-nos-á identificar os principais traços iden-titários do controlo do poder judicial em Portugal durante a Idade Média e primeiro século da Idade Moderna, até à conclusão da última compilação legislativa das Ordenações do reino -as Ordenações Filipinas- terminadas em 1595 e colocadas em vigor no ano de 1603.

Da Inquirição Devassa e do Juízo de Residência

O status quaestionis tende a situar a origem do controlo da atividade dos juízes no reinado de D. Dinis (1279-1325), sob a égide castelhana das Sete Partidas de Afonso X o Sábio. Amparando-se no Repertório às Ordenações de Manuel Mendes de Castro (publicado pela primeira vez em 1604), Isabel Graes, presume que, para evitar ou reparar as irregularidades, atos negligentes e delituosos praticados pelos juízes no exercício das suas funções:

"foram criadas as residências, instituto que Portugal recebe no reinado de D. Dinis por...

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