O constitucionalismo espanhol e português durante a primeira metade do século XIX (um estudo comparado)

AutorJoaquín Varela Suanzes-Carpegna
Páginas237-274

*Por convite do professor Braz Brancato, em 18 de outubro de 2006 presentei este trabalho, com o título "El constitucionalismo español y portugués durante la primera mitad del siglo XIX (un estudio comparado", na Conferência de Encerramento do "VI Congresso Internacional de Estudos Ibero-Americanos", que ocorreu em Porto Alegre, na PUCRS. Foi publicado em espanhol no livro editado por Izaskun Álvarez Cuartero e Julio Sánchez Gómez, "Visiones y revisiones de la Independencia americana. La Independencia de América, la Constitución de Cádiz y las Constituciones Iberoamericanas", Servicio de Publicaciones de la Universidad de Salamanca, Salamanca, 2007, pp. 13-51. Nesse mesmo ano foi publicado no Brasil, também en espanhol, na "Revista de Estudos Ibero-Americanos", PUCRS. v. XXXIII, n.1, p. 38-85, junho de 2007. A presente tradução portuguesa, até agora inédita, foi feita pela professora Elaine Sodré, bolsista Capes, com instância de investigação ( janeiro-julho 2008) no Seminario de História Constitucional "Martínez Marina", da Universidad de Oviedo (Espanha), a quem agradeço sua amável colaboração.

Page 238

"O frade era, até certo ponto, o Dom Quixote da sociedade Velha.

O barão é, em quase todos os pontos, o Sancho Pança da sociedade nova."

Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra, 1843, cap. XIII.

I Introdução

Nas páginas que seguem discorerrei sobre a evolução do constitucionalismo espanhol e português ao longo da primeira metade do século XIX. O principal propósito é mostrar suas semelhanças e diferenças, bem como as mútuas influências nos fatos, nas idéias e, sobretudo, nos textos constitucionais. Contudo, para isso não é suficiente confrontar os dois constitucionalismos ibéricos, visto que é necessário inseri-los em um contexto mais amplo da história constitucional comparada, especialmente na britânica e na francesa. Uma abordagem sem dúvida mais complexa, e talvez por isso, pouco encontrada na historiografia espanhola e portuguesa, que não analisam os constitucionalismos ibéricos a partir de um ponto de vista bilateral.

Partindo dessas premissas, neste texto concentrar-me-ei em examinar o modelo constitucional estabelecido na Constituiçao espanhola de 1812 e na portuguesa de 1822. Tal modelo foi inspirado na filosofia política da Revolução Francesa de 1789. Bem como, em sua substituição por outro modelo mais conservador, que tinha como principal fonte de inspiração o constitucionalismo desenvolvido na Grã-Bretanha a partir da Revolução Inglesa de 1688, e que na França pós-napoleônica difundiraram Benjamin Constant e os doutrinários Guizot e Royer-Collard, os autores mais influentes para os liberais ibéricos durante os anos trinta e quarenta do século XIX, junto com Jeremy Bentham.

Com o primeiro modelo constitucional, os "doceanistas" espanhóis e os "vintistas" portugueses pretendiam construir, como havia ocorrido na França entre 1789 e 1792, uma monarquia assemblear na qual as Cortes unicamerais, eleitas mediante um sufrágio muito amplo, deveriam converter-se no órgão

Page 239

mais relevante dentro desse novo Estado, ao qual deveria submeter-se o monarca. Com o segundo modelo constitucional, se estruturou na Península Ibérica uma monarquia constitucional que atribuía a direção política do Estado à Coroa e, em menor escala às Cortes, compostas de duas Câmaras: a Alta, na qual teriam assento a nobreza, o clero e os altos corpos da Administração, e a Baixa, eleita através de um sufrágio censitário.

Este último modelo constitucional teve nas nações ibéricas duas versões: a mais conservadora delas, sustentada pelos "cartistas" portugueses e pelos "moderados" espanhóis (também por Grã-Bretanha e França, as duas potências européias hegemônicas, sem a influência política e econômica das quais não se entende a história peninsular desse período), teve seu reflexo na Carta de 1826, que serviria de base para a monarquia constitucional portuguesa do século XIX. Na Espanha, essa inspiração se cristalizou, primeiro, no incompleto Estatuto Real de 1834, e mais tarde na Constituição de 1845. Uma versão menos conservadora, mas também distanciada dos esquemas revolucionários do "doceanismo" e do "vintismo", se consolidou na Constituição espanhola de 1837, defendida pelos "progressistas", e na portuguesa de 1838, o fruto mais valorizado do movimento "setembrista".

Se o sub-modelo "cartista"/"moderado" inspirava-se, sobretudo, na Carta francesa de 1814, o "progessista"/"setembrista", buscava inspiração, de forma primordial, na Carta francesa de 1830 e na Constituição belga de 1831. Contudo, em ambos os casos, como foi dito, tratava-se de adaptar, na Península Ibérica o constitucionalismo britânico, que havia se desenvolvido a partir de 1688. Tal adaptação dar-se-ia desde os esquemas da monarquia constitucional (os preferidos por "cartistas" e "moderados"); ou desde os mais avançados (para os quais se inclinavam os "progressitas" e os "setembristas") da monarquia parlamentária, tal como estava se desenvolvendo na GrãBretanha, desde o reinado de Jorge I, a princípios dos setecentos, com dois marcos fundamentais: a demissão de Lord Norh, em 1782 e a Lei da Reforma de 1832.

II "Doceanismo" e "vintismo"; as Constituições de 1812 e de 1822
2.1. O liberalismo "doceanista" e a Constituição de Cádis
2.1.1. Afrancesados e patriotas

É importante destacar que o fator que desencadeou o surgimento do constitucionalismo espanhol foi externo, não interno: a invasão francesa. Este é um fato notável, que se deve ter em conta para compreender o alcance e as limitações da revolução espanhola. Sem dúvida, as idéias constitucionais tinham começado a se difundir entre a elite intelectual a partir da segunda metade do século XVIII, mas somente depois da invasão francesa começou a se construir na Espanha um Estado constitucional.

Page 240

A seqüência dos fatos é bem conhecida, mas é conveniente recordá-la. Entre os dias 17 e 19 de março de 1808 ocorreu o chamado "Motim de Aranjuez", cujo resultado foi que Carlos IV se viu obrigado a abdicar da Coroa em nome de seu filho Fernando VII e a despedir seu Primeiro Ministro Godoy. Uma semana depois, as tropas de Napoleão, com o pretexto de se dirigir a Portugal e amparado pelo Tratado de Fontainebleau, assinado por França e Espanha no ano anterior, entram em Madri, sob o comando de Murat. Em 10 de abril, Fernando VII, junto com seus colaboradores mais próximos, decide sair de Madri para encontrar-se com o Imperador dos franceses, com intenção de que Napoleão o reconhecesse como legítimo rei de Espanha. Dez dias depois, Fernando VII chegava à cidade francesa de Bayona, enquanto seus pais, Carlos IV e Maria Luisa, chegaram dez dias depois, em 30 de abril, com a intenção de que Napoleão obrigasse Fernando VII a devolver ao pai a Coroa de Espanha. Mas o Imperador, que habilmente havia conseguido enganar tanto a Fernando VII, quanto a Carlos IV, levando a Bayona a família real espanhola, não pretendia nada mais do que a renúncia de todos os Bourbons à Coroa espanhola. Napoleão logrou seu objetivo em princípios de maio, o que permitiu que seu irmão José, dois meses mais tarde, fosse reconhecido como rei de Espanha e das Índias.

Com as renúncias de Bayona, caiu a monarquia hispânica e se produziu uma profunda crise na sociedade espanhola, a mais profunda de toda sua história contemporânea até a de 1936. É preciso observar que pouco antes de se formalizarem aquelas renúncias, exatamente em 2 de maio, a população de Madri pegou em armas contra as tropas francesas que ocupavam a cidade. Esse levante foi duramente reprimido pelas tropas de Murat, o que provocou uma revolta generalizada em toda Espanha. Na realidade, foi o começo da longa e dura Guerra de Independência, que permitiu o surgimento de uma autêntica revolução liberal, com a que se iniciou o constitucionalismo na Espanha.

Para enfrentar a crise iniciada com as renúncias de Bayona, alguns espanhóis decidiram compactuar com os invasores e aceitaram a legitimidade de José I. Esta foi a opção feita pelos afrancesados, muitos dos quais ocupavam uma alta posição social, política e intelectual. Além disso, os afrancesados compartilhavam os princípios políticos do despotismo ilustrado. Eram homens de posição moderada, contrários a quaisquer veleidades revolucionárias. Diante do princípio da soberania nacional, invocado pelos patriotas liberais nas Cortes de Cádis para justificar a sublevação contra Napoleão, os afrancesados basearam-se no príncipio monárquico, o que lhes permitiu fundamentar doutrinariamente sua lealdade a José I, em cuja monarquia autoritária viam um instrumento necessário para modernização política, sem os perigos intrínsecos de uma revolução liberal. O texto que apresentou as linhas mestras dessa monarquia foi o "Estatuto de Bayona", na realidade, imposto por Napoleão a uma Junta de notáveis reunidos naquela cidade francesa e oficialmente...

Para continuar leyendo

Solicita tu prueba

VLEX utiliza cookies de inicio de sesión para aportarte una mejor experiencia de navegación. Si haces click en 'Aceptar' o continúas navegando por esta web consideramos que aceptas nuestra política de cookies. ACEPTAR