Comissão de fixação de remunerações

AutorAna Sá Couto
CargoAdvogada
Páginas58-64

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No âmago das questões em torno do valor do dinheiro e do custo/retorno da atividade dos gestores das sociedades comerciais (em particular, das sociedades cotadas) que dominaram boa parte da reflexão sobre as origens das crises financeiras dos começos do século XXI, é importante ponderar as diretrizes normativas subjacentes à remuneração dos membros do órgão de administração que, para a reflexão que nos propomos fazer, assumimos ser devida1. Neste contexto, o papel das comissões de fixação de remunerações assume um especial relevo, na medida em que lhes caberá determinar em que termos e quantidade será compensada a ativi-dade dos sujeitos que integrem o órgão de administração. Neste artigo, em concreto, analisaremos de forma sintética o regime português de constituição e funcionamento das comissões de fixação de remunerações, tendo presente a sua existência generalizada no universo das sociedades cotadas portuguesas.

Remuneração dos administradores de sociedades cotadas

Um ponto fulcral ao qual se deve atentar quando a discussão se centra na temática da remuneração dos administradores, em particular no contexto da crise financeira, reside na necessidade de assegurar que os incentivos para a atuação do gestor estão devidamente alinhados com os interesses dos acionistas e investidores. Neste sentido, um apropriado alinhamento de incentivos permitirá diminuir os custos de agência e de transação associados a um contrato necessariamente incompleto2 devido à racionalidade limitada e à assimetria de informação natural-mente ligadas à dissociação entre propriedade e controlo. Esta necessidade surge tendencialmente de forma mais notória nas sociedades cotadas em que a negociação das ações em mercado favorece o referido fenómeno de dissociação entre propriedade e controlo3. Neste âmbito, como refere GIÃO, JOÃO SOUSA: «A eficácia das «forças de mercado» no controlo dos poderes dos administradores depende, em cada caso, das características do mercado e da natureza do comportamento dos administradores».4

«[N]um mercado eficiente, os administradores menos

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leais e diligentes seriam ultrapassados por administradores mais leais e diligentes, capazes de garantir um desempenho superior a custos inferiores. Essa ultrapassagem concretizar-se-ia no mercado de controlo societário: uma sociedade que não controlasse os seus custos de agência tornar-se-ia, invariavelmente, menos competitiva nos mercados em que actue (de produtos e de capitais) e, em consequência, assumir-se-ia como um alvo apetecível para uma transição de controlo.» 5

Como veremos mais adiante, a estrutura acionista influi igualmente no esboço da regra say on pay pela assembleia geral, consagrada (entre outros) no sistema jurídico português. Com efeito, em sistemas caracterizados pela fragmentação do capital (dispersed ownership systems), a probabilidade de se verificarem problemas de agência derivados de conflitos de interesse entre acionistas e administradores será superior. Consequentemente, o voto dos acionistas terá, nesses sistemas, maior significado e será de importância crítica. Pelo contrário, em sistemas cuja estrutura típica se caracterize pela concentração do capital em acionistas maioritários (block-holder systems ou concentrated ownership systems), sendo este claramente o perfil acionista típico em Portugal, o problema de agência prende-se já com private benefits of control, pelo que a influência acionista será ditada pelos grandes acionistas que possuam mais direitos de voto, em detrimento dos acionistas minoritários. Desta forma, o poder do maior investidor será extensivo ao órgão de administração.6

Acresce, ainda, o facto de os gerentes ou administradores da sociedade estarem adstritos aos deveres fundamentais que, no direito português, encontram acolhimento no artigo 64.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais («CSC»). A alínea a) do citado dispositivo legal contempla os deveres de cuidado, nomeadamente o emprego da diligência de um gestor criterioso e ordenado. Por sua vez a alínea b) estabelece um dever de lealdade a observar pelos gestores no interesse da sociedade e atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios, contraposto aos interesses de curto prazo dos administradores. É em função destes deveres que se definem os interesses em jogo. Nestes, e naturalmente na construção de um novo conceito de interesse social, a lei engloba também, em acréscimo aos dos sócios, os interesses de todos os sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade - os chamados stakeholders (trabalhadores, clientes, credores, entre outros) - que podem retirar do seu adequado funcionamento uma satisfação ou utilidade pessoal7.

Para que a resolução de conflitos de interesses se verifique, é necessário chamar à colação a existência de deveres de transparência perante os referidos acionistas e stakeholders, tendo em consideração o dever previsto no artigo 65.º do CSC de relatar a gestão e apresentar contas.8

Say on pay

A designação say on pay cobre genericamente todas as normas jurídicas que permitam, promovam ou obriguem a política de remunerações societária, ou uma declaração a esta relativa, a ser submetida a um voto expresso em assembleia geral, com uma periodicidade pré-determinada, em regra anual.

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Esta regra tem sido aplicada internacionalmente através de métodos diversos.10 A nível europeu, a Recomendação 2009/385/CE da Comissão Europeia relativa à instituição de um regime adequado de remuneração dos administradores de sociedades cotadas eleva o escrutínio acionista no que concerne ao processo de fixação das remunerações.11 A matriz da regra say on pay europeia reside no mode-lo inglês introduzido em 2002, onde o voto acionista assume um carácter meramente consultivo. Portanto, apesar de, em caso de repúdio não se

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verificarem consequências jurídicas, a aprovação da política de remunerações releva, uma vez que quando não aprovadas, os danos reputacionais para a administração são significativas.12

Neste âmbito, importa ainda referir a existência, nos Estados Unidos da América, de say on pay votes. Os acionistas ou investidores são convidados a manifestar-se acerca da compensação dos executivos de topo da sociedade - do CEO, do CFO e, pelo menos, de mais três administradores com remunerações elevadas, os chamados named executive officers. As sociedades não estão vinculadas a uma linguagem específica ao pedir a aprovação do acionista. Ao invés, a cada sociedade é atribuída a flexibilidade para produzir a estrutura adequada para a deliberação. Notemos, contudo, que esta tão pouco é vinculativa.13

No que ao direito interno diz respeito, cumpre referir o regime constante do Decreto-Lei n.º 225/2008, de 20 de Novembro, que, no âmbito da transposição da Diretiva n.º 2006/43/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Maio, procede à designação das Entidades de Interesse Público (doravante «EIP») e da Lei n.º 28/2009, de 19 de Junho 14, estipulando uma nova exigência informativa para estas entidades (IEP): o dever de apresentação à assembleia geral de uma declaração sobre política de remunerações dos membros dos respetivos órgãos de administração e de fiscalização.

Consideram-se, para este efeito, EIP as entidades enumeradas no artigo 2.º do Décreto-Lei n.º 225/2008 e no n.º 2 do artigo 2.º da Lei 28/2009. À luz do artigo 2.º, n.º 1 da Lei 28/2009, «o órgão de administração ou a comissão de remuneração, caso exista, das EIP (…) submetem, anualmente, a aprovação da assembleia geral, uma declaração sobre política de remuneração dos respetivos órgãos de administração e fiscalização», na qual devem constar os elementos definidos pela mesma lei no artigo
2.º, n.º 3.15 Ainda, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 2.º, da declaração que será apresentada anualmente à assembleia geral cabe ao órgão de administração ou à comissão de remuneração a elaborado. Posteriormente, a declaração, bem como o montante anual da remuneração auferida pelos membros dos referidos órgãos, de forma agregada e individual, está sujeita a divulgação nos documentos de prestação de contas anuais. Excetua-se o caso de emitentes de ações admitidas à negociação em mercado regulamentado, cuja divulgação será feita no relatório anual de governo da sociedade, a que se refere o artigo 245.º – A do Código dos Valores Mobiliários, em conformidade com o preceito estabelecido no artigo 3.º da lei supramencionada.

Cumpre sublinhar o facto de que a obrigação que a lei estabelece consubstancia um verdadeiro e próprio dever de apresentação de um documento sobre política de remunerações, em sentido técnico.16 De resto, a violação das obrigações descritas (submissão à assembleia geral da declaração sobre política de remunerações e divulgação da mesma) constitui um ilícito contraordenacional punível pelos diplomas aplicáveis às EIP, consoante a sua natureza, sendo aplicáveis as coimas correspondentes às contraordenações de maior gravidade, conforme resulta do artigo 4.º da Lei 28/2009.17

Os efeitos decorrentes da declaração sobre a política de remunerações têm um carácter informativo, legitimador e de favorecimento às melhores práticas no âmbito da remuneração. Contudo, tais objetivos, pretendidos na delineação de uma política de

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remunerações, não são necessariamente salvaguardados pela regra say on pay. Não obstante, o escrutínio dos acionistas pode desempenhar um papel de travão a práticas de gestão indesejáveis.18 Da mesma forma, esta obrigação de disclosure, também oriunda do direito anglo-saxónico, torna mais fácil a...

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