O chanceler da Casa da Suplicacâo e o controlo dos actos dos desembargadores (séc. XVI)

AutorJorge Veiga Testos
Páginas83-97

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Jorge Veiga Testos

Universidade de Lisboa

Introdução1

Com a presente comunicação pretendemos partilhar algumas reflexões sobre o ofício de chanceler da Casa da Suplicação -o maior tribunal da Justiça de nossos Reinos2- e, em particular, compreender a função que cumpria a este ofício no contexto dos mecanismos de controlo judicial quinhentistas.

O ofício de chanceler da Casa da Suplicação foi criado em 1534, no âmbito de uma importante reforma institucional centrada no ofício do chanceler-mor e levada a cabo por D. João III (1502-1557). As competências do novo oficial, integrado na Casa da Suplicação, eram transferidas da esfera do chanceler-mor, ofício que, embora tenha mantido a sua existência, se viu despojado de uma parte substancial das suas funções.

A reforma quinhentista do ofício de chanceler-mor enquadra-se no movimento de reordenação da esfera de poderes e competências do oficialato régio que caracteriza o desenvolvimento e consolidação do Estado moderno europeu. Com efeito, tem sido notado3 que a primeira metade do séc. XVI assistiu à reorganização da posição do ofício de chanceler (tradicionalmente integrado no despacho régio) dentro do sistema de governo das monarquias europeias. Depois da morte dos últimos chanceleres de tipo medieval -Mercurino di Gattinara (1465-1530), grão-chanceler de Carlos V (1500-1558); Thomas Wolsey (1473-1530), Lord Chancellor de Henrique VIII de Inglaterra (1491-1547); Antoine Duprat (14631535), chanceler de Francisco I de França (1494-1547)-, a chancelaria, importante instituição e espaço de poder durante a Idade Média, não resistiria à afirmação política dos secretários - de Francisco de los Cobos (1477-1547) em Espanha, de Thomas Cromwell (1485-1540) em Inglaterra, de Florimond Robertet (1531-1567) em França. O triunfo dos secretários relegou o ofício de chanceler para as suas funções judiciais e de validação e controlo jurídico, bem longe já do seu papel activo no despacho régio.

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O chanceler da Casa da Suplicação
A Origens do oficio

O ofício de chanceler e a chancelaria, enquanto departamento por este encabeçado, corporizam instituições profundamente medievais4. O seu desenvolvimento está ligado ao crescente papel da escrita e dos documentos na configuração do poder: a redução a escrito, enquanto forma de conservação do passado e da memória, veio fortalecer o vínculo entre o Direito e o poder régio.

Na formação da monarquia portuguesa, como nas demais monarquias medievais europeias, o chanceler afirma-se, primeiramente, como um alto ofício palatino, responsável, desde logo, pela guarda dos selos do rei. O selo régio, mecanismo e instrumento de validação dos documentos reduzidos a escrito, representa o rei e a sua vontade, integrando o corpo simbólico do monarca. Onde o selo régio é aposto, ouve-se a voz do rei.

A chancelaria régia, dirigida pelo chanceler e composta por um número variável de escrivães, é o departamento responsável pela redução a escrito dos documentos emitidos em nome do rei, pelo seu registo em livros próprios, pela sua validação através da aposição do selo régio e pela sua expedição, por via da entrega ou envio aos seus destinatários.

Na medida em que valida os documentos régios, o chanceler assume também a função de revisão do seu conteúdo; cumpre-lhe identificar, do ponto de vista formal, falhas de redacção e, do ponto de vista material, conflitos com outras disposições ou privilégios previamente concedidos. Cabe-lhe, assim, assegurar o controlo jurídico da produção documental régia, garantindo que os documentos não são dados contra direito.

Em Portugal, as Ordenações Afonsinas5, a primeira compilação oficial do direito nacional, datada da primeira metade do séc. XV, dedicam um dos títulos iniciais -consagrados aos ofícios do tribunal régio- ao chanceler-mor, reproduzindo em grande parte, o disposto quase dois séculos antes no texto das Partidas, monumento jurídico castelhano compilado no reinado de Afonso X, o Sábio (1221-1284)6.

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Cabia ao chanceler, enquanto medianeiro entre o rei e os homens, analisar o conteúdo da documentação régia antes de a selar, garantindo que esta não seria dada contra direito, para que não recebesse dapno nem vergonha. Entendendo que o documento não era feito como devia, cabia ao chanceler deriscar com pena, ou seja, cancelar através de riscos feitos com a pena. Este cancelamento não era, todavia, automático. As Ordenações Afonsinas acrescentarão ao disposto nas Partidas que o cancelamento pelo chanceler só deve ser feito quando as Cartas forem assignadas pelos Desembargadores, que quando as Cartas forem assinadas per Nós nom as deve grosar nem cancellar mais deve-as de trazer a Nós pera nos dizer as duvidas que em ellas tem. Na prática, as dúvidas que o chanceler pudesse ter quando à documentação assinada pessoalmente pelo rei (e não pelos seus oficiais) deviam ser discutidas com o monarca, limitação que evidencia a concepção medieval do poder régio, que não conhece superior e cuja subordinação e obediência à lei é feita de forma voluntária.

Continuando a reproduzir o texto das Partidas, o título das Ordenações Afonsinas dedicado ao chanceler-mor traça também o perfil detalhado de quem deve serve o ofício de chanceler, assente num elenco de qualidades morais, sociais e intelectuais7. Deste retrato normativo do chanceler perfeito ainda se encontrarão

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vestígios nas Ordenações Manuelinas8, a compilação reduzida à letra de imprensa no reinado de D. Manuel I (1469-1521) e definitivamente concluída em 1521, e nas Ordenações Filipinas de 16039. Numa sociedade assente numa construção estratificada, o chanceler devia, desde logo, provir de boa linhagem: o valor da honra inerente ao estatuto e condição de nobre acarretava o peso moral da vergonha de cometer erros. Por outro lado, o titular do ofício devia também ser de bons costumes, sabendo receber aqueles que se lhe dirigiam. Nos requisitos do intelecto, o chanceler devia ter bom siso natural, o bom entendimento que fazia com que soubesse guardar as puridades, os segredos do rei; devia saber falar bem, ser bem razoado, sabendo explicar através das suas palavras a razão do conteúdo de cada carta; necessário era ainda ter boa memória, para não esquecer as cartas já passadas e as que se lhe mandavam fazer, de modo a que não se contrariassem entre si. No respeitante à sua formação, o chanceler devia ser letrado, sabendo ler e escrever em latim e em português. Finalmente, o amor ao rei, que o honrara com o ofício e a quem servia, devia estar sempre presente na sua actuação.

Num texto do séc. XV, que se presume anterior às Ordenações Afonsinas, designado -depois do seu estudo por Martim de Albuquerque- por regimento quatrocentista da Casa da Suplicação, encontra-se estabelecido que o chanceler devia ser jurisconsulto, amante da justiça e da equidade, e mais honrado que os outros [oficiais]10, sendo aqui reafirmados os valores da honra, do conhecimento e da justiça como traços determinantes do perfil do chanceler.

Em meados do século XIV, reinando D. Pedro I (1320-1367), o ofício de chanceler será ameaçado pela emergência de um novo ofício, com protagonismo progressivo, surgido no reinado anterior de seu pai D. Afonso IV (1291-1357). Até então, o rei despachava pessoalmente todos os assuntos com os seus oficiais, sendo os actos redigidos e validados na chancelaria régia, sob a supervisão do chanceler. A chancelaria era, portanto, responsável exclusiva pela exteriorização da vontade régia, através da sua redução a escrito. Porém, com o aumento da participação do rei na administração do reino, o mecanismo de despacho régio irá complexificar-se, e, a par do chanceler, surge um ofício concorrente, o escrivão da puridade. Este oficial, actuando na intimidade do rei, é o guarda do selo particular, utilizado para validar documentos de maior importância ou segredo. A utilização do selo pequeno (ou da puridade, chamado em Portugal o selo do camafeu), que rivalizará com o selo grande a cargo do chanceler, irá quebrar o princípio da unidade da Chan-celaria11, destinado a garantir a autenticidade das decisões régias, impedindo a produção de documentos falsos. Ora, a partir da segunda metade do séc. XIV, o escrivão da puridade, actuando na câmara régia e assistindo ordinariamente ao despacho real, passaria a intervir de forma crescente no domínio da produção de diplomas régios, que deixam progressivamente de passar pela chancelaria.

A situação de 'secundarização' do cargo tradicionalmente primordial12 de chanceler decorre do fortalecimento do poder real, que se materializa com o aparecimento de novas instituições representativas da autoridade régia. A

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diversificação institucional alivia a chancelaria das suas competências burocráticas, multiplicando-se, assim, os espaços e oficiais que actuam em nome do rei. No campo da administração da justiça, esse processo de especialização manifesta-se através da autonomização de instituições judiciais da corte. Com efeito, o rei-juiz já não arbitra apenas os conflitos entre membros da sua corte; faz-se rodear de magistrados, considerados pars corporis principis, "parte do corpo do rei"13, pela boca dos quais administra a justiça régia. Pela extensão das suas funções, o chanceler intervinha também na administração da justiça, quando o rei actuava como juiz, uma vez que as sentenças levavam o selo real e passavam pela chancelaria régia.

Em Castela14, como em França e Inglaterra, assistir-se-á a um desdobramento funcional e orgânico da chancelaria, ficando, por um lado, a chancelaria primitiva como sede do tribunal régio e como órgão de expedição dos...

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