O casamento civil homoafetivo e sua regulamentação no Brasil (Português)

AutorJulio Pinheiro Faro - Jackelline Fraga Pessanha
CargoMestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV) - Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV).
Páginas72-81

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1. Introdução

Os ordenamentos jurídicos modernos se caracterizam pelo reconhecimento de uma ampla variedade de direitos. Essa diversidade de direitos decorre fundamentalmente de se ter erigido a dignidade humana a fundamento das ordens constitucionais e internacional no segundo pós-guerra, ampliando bastante o catálogo de direitos reconhecidos, explícita ou implicitamente. Dentre esses direitos, tem-se incluído, recentemente, o direito à livre opção de orientação sexual, sobre cuja proteção este trabalho discorre no que pertine ao Direito das famílias, pautando-se em recentes decisões da Suprema Corte brasileira e na interpretação constitucionalmente conforme do ordenamento brasileiro. O reconhecimento da liberdade de opção quanto à orientação sexual concretiza-se na possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo (casamento homoafetivo), observadas as mesmas regras do casamento entre pessoas do mesmo sexo (casamento heteroafetivo).

Este estudo faz uma breve análise sobre a possibilidade do casamento homoafetivo no Brasil, que, apesar de reconhecido judicialmente a partir de uma interpretação da Constituição brasileira, não encontra, ainda, forte respaldo legislativo.

2. A homoafetividade é um direito fundamental

A liberdade de opção quanto à orientação sexual reflete uma escolha quanto a um estilo de vida, que há muito tempo não se baseia simplesmente em relações carnais, mas, principalmente, em relações afetivas. O afeto é o aspecto central das entidades familiares contemporâneas (PEREIRA, 2011: 193), na busca pela boa vida. Todavia, em algum momento da história humana, estabeleceu-se que as relações afetivas e carnais, principalmente estas, só poderiam ocorrer entre um homem e uma mulher, sendo considerado anormal qualquer comportamento destoante desse padrão.

Presume-se que esse giro tenha ocorrido na Idade Média. Na cultura, na literatura e na mitologia das sociedades egípcia e mesopotâmica antigas, as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo eram reconhecidas (ESKRIDGE, 1993: 1437). No entanto, as evidências são apenas indiretas, sendo uma delas a tumba do Faraó Ikhnaton, em que há representações dele em posições íntimas com seu companheiro, o que é significativo para a época, pois na maioria das tumbas a representação entre homem e mulher era normalmente muito formal (ESKRIDGE, 1993: 1437-1438).

Evidências mais fortes e diretas são encontradas na cultura greco-romana. Há um registro no Symposium de Platão que sugere uma relação esposo-esposa entre Aquiles e Pátroco, embora não fosse claro o papel desempenhado por cada um (ESKRIDGE, 1993: 1442). Há relatos de que na antiguidade ateniense, os cidadãos (que eram apenas os homens adultos), "poderiam penetrar indivíduos socialmente inferiores, como mulheres, garotos, estrangeiros e escravos" (RUPP, 2001: 288). Os historiadores parecem entrar em consenso de que o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo não era proibida, havendo, inclusive, tolerância social (ESKRIDGE, 1993: 1445-1446).

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Evidências fortes de tolerância social ao relacionamento entre pessoas do mesmo sexo também são encontradas na Idade Média (ESKRIDGE, 1993: 1437). E é por volta da Alta Idade Média que parecem ter surgido os primeiros sinais de intolerância a esse tipo de relação. O Código de Justiniano de 533 tornou ilícita a relação íntima entre pessoas do mesmo sexo, porque violava o ideal cristão do casamento entre pessoas de sexos distintos (ESKRIDGE, 1993: 1447-1449). A essa época, a Igreja adotava posição contrária à relação entre pessoas do mesmo sexo, em virtude de questões de procriação, mas admitia, em alguns casos, esse tipo de relação entre clérigos (ESKRIDGE, 1993: 1450). A Igreja teve papel relevante na mudança de percepção social sobre relações entre pessoas do mesmo sexo, o que, à época, era chamado de inversão. A mudança de atitudes adveio de um pesado investimento histórico promovido pelas instituições religiosas sobre um tipo de sexualidade "que permite a organização social a partir de um determinado tipo de família, baseada num casal heterossexual e monogâmico e que restringe ou privilegia a prática sexual orientada para a procriação" (ADELMAN, 2000: 164).

Apesar da perseguição promovida pelos inquisidores aos praticantes de inversão, há documentos históricos que atestam a existência, durante a Modernidade, de guetos ou comunidades, situados nos centros urbanos europeus, em que havia a prática da inversão (ESKRIDGE, 1993: 1472). Mas não só na Europa os invertidos eram perseguidos. Entre 1860 e 1920, arquivos coloniais da Índia registram condenações contra sodomitas (ARONDEKAR, 2005: 20).

Também os espanhóis registraram em 1615 um costume comum entre povos pré-colombianos: "os pais [davam] um garoto a seu jovem filho para que ele o possuísse como uma mulher e para usá-lo como uma mulher" (ESKRIDGE, 1993: 1454). Os portugueses registraram, em 1576, que havia mulheres no nordeste brasileiro que deixavam de lado seus afazeres e agiam como homens, tendo uma mulher para lhes servir (ESKRIDGE, 1993: 1454).

Há registros de que entre os Índios norteamericanos, os Astecas, os Maias e os Incas havia uma tradição berdache, em que um homem ou uma mulher que se tenha desviado do papel tradicional de seu gênero recebe as responsabilidades do sexo oposto...

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