A Carta Constitucional portuguesa de 1826

AutorJosé Miguel Sardica
Páginas527-561

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I Introdução: a carta constitucional na longa duração do constitucionalismo português

De entre todos os textos constitucionais que vigoraram na história contemporânea de Portugal, a Carta Constitucional foi aquele que mais tempo existiu: 72 anos divididos em duas curtas vigências iniciais de dois anos cada (1826-1828 e 1834-1836), e numa longa e ininterrupta vigência iniciada em 1842 e terminada apenas com a queda do regime monárquico, em 1910. Por comparação com ela, as outras duas constituições liberais do oitocentismo português não passaram de experiências efémeras, mesmo deixando ideias e dinâmicas com repercussão futura: a Constituição Vintista – primeiro texto constitucional português – aprovada em 1822, vigorou apenas entre Outubro desse ano e meados de 1823, e entre 1836 e 1838 (um total de 3 anos); quanto à Constituição Setembrista, vigorou menos de 4 anos, entre Abril de 1838 e o início de 1842. Se se alargar a comparação, a Carta Constitucional ganha até em durabilidade aos três textos constitucionais do século XX: a Constituição republicana, que vigorou entre 1911 e, já muito ferida pela Ditadura Militar, até 1933 (cerca de 22 anos)1, a

Constituição salazarista, que vigorou entre 1933 e 1974 (41 anos), e a Constituição democrática de 1976, que leva 36 anos de existência2.

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Se a Carta Constitucional durou tanto, mesmo que muitas vezes olhada com reserva, foi essencialmente pela sua posição de charneira e de equidistância entre o velho e o novo, entre o Antigo Regime e a Revolução, entre a autoridade régia e a liberdade dos povos. Num século – o XIX – cuja dinâmica evolutiva portuguesa pode ser descrita como a de “um trânsito atribulado, muitas vezes violento, da Monarquia para a República, contra as forças e os interesses que pugnaram por sustê-lo num equilíbrio a meio caminho entre as duas”3, a Carta foi exactamente o programa e o guia dos que achavam que era possível viver à sombra de reis que não fossem déspotas absolutos, e governar povos e países não organizados em repúblicas.

Por detrás da carta e na base da mesma estavam, no entanto, muito mais do que simples considerandos oportunistas sobre os melhores mecanismos para casar reis e povos. Estava o que a cultura ou a filosofia política coevas designavam por cartismo. E o cartismo era, para quem o seguia, bem mais do que “uma facção política nacional”; tratava-se, na verdade, como particulariza António José Saraiva, de “todo um sistema de direito político, com base filosófica no espiritualismo”, vertido numa “postura afectiva” que se posicionava entre o direito divino dos reis e a plena soberania dos povos, e que por isso mesmo era crítico tanto do puro tradicionalismo como do radicalismo mais intransigente e revolucionário4. Em diversos aspectos, o cartismo repensou e reelaborou o próprio vocabulário liberal, redefinindo conceitos como o de legitimidade (a sageza do tempo plasmada nas Cartas contra a variabilidade constituinte das Constituições), representação (capacidade e “razão pública” hierarquizadoras e oligárquicas contra a vontade contratualista horizontal e igualitária), natureza do governo (constitucional monárquico e não estritamente parlamentar), ou extensão do sufrágio (indirecto e censitário e não directo e alargado). Foi isto que lhe suscitou tantos adversários, primeiro à direita, e depois, à medida que o século XIX ia decorrendo, à esquerda5; mas foi também aquela essência – a permanente busca de uma via média na política – que constituiu o segredo da sua longevidade.

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II As origens do constitucionalismo outorgado

Rigorosamente, o nome “Carta Constitucional” é de origem francesa. Terá sido inventado pelo famoso diplomata Charles de Talleyrand para crismar o texto constitucional outorgado por Luís XVIII aquando do seu regresso a França, em 1814. O novo monarca Bourbon não se opunha ao governo constitucional, mas estava determinado a que a constituição fosse outorgada como um “acto de graça do trono”6, ou seja, não votada (e imposta) pela nação ao rei, mas graciosamente dada por este aos seus súbditos, assim elevados, pela expressa generosidade do trono, à condição nova de cidadãos. Nas próprias palavras de Talleyrand, tratavase, através dessa outorga, de “reconciliar a Monarquia restaurada com o Império e a Revolução através de uma constituição baseada no modelo inglês” – com o qual, de resto, Luís XVIII tomara contacto e simpatizara durante a sua estadia na Grã-Bretanha7.

Estabeleceu-se assim a distinção formal que separa uma Carta Constitucional de uma Constituição: “uma Carta é outorgada, uma Constituição é deliberada; uma é um dom espontâneo, livremente concedido pelo soberano, a outra um contrato entre a nação e povo soberano e o chefe do Estado”8. A Carta revivifica o “direito de graça” dos soberanos de Antigo Regime, ao mesmo tempo que não nega, apenas revê, o contratualismo característico das sociedades liberais9. Mas o pacto subjacente à Carta é diferente do contrato das constituições produzidas e votadas em parlamentos. Enquanto nestas últimas o contrato é celebrado “pela Nação consigo mesma” – o que faz com que o rei, que “não é parte contratante, senão apenas uma parte do contrato”, se considere “tacitamente eleito pelos representantes no momento em que a jura”10 – na Carta o rei é a origem do contrato, o seu proponente e em última análise o árbitro do seu funcionamento corrente. É isto que por sua vez determina que as Cartas sejam menos liberais do que as Constituições, porque não sendo “um produto da soberania popular” mas “uma concessão voluntária do monarca”, aquelas implicam “uma partilha de soberania entre o rei e a nação que se traduz no exercício de prerrogativas mais extensas, contrabalançadas por um parlamento com mais ou menos poderes”11, em todo o caso subalternizado na hierarquia dos órgãos do Estado. Não havendo um modelo único para as Cartas – como também nunca o houve (ou há) para as Constituições – reconhece-se que as primeiras eram por natureza “mais acessíveis às interpretações restritivas, mediante as quais se pode prometer muito e dar muito pouco”12.

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Todas as Cartas Constitucionais nasceram e viveram deste laborioso equilíbrio de moderação e de reconciliação. Ao mesmo tempo que serviam para, à direita, trazer para a modernidade os realistas antigos que nela se quisessem integrar mediante concessões, colocavam um travão à esquerda, contendo e desarmando o que o chanceler austríaco Klemens Metternich (o arquitecto internacional da Europa restauracionista) chamava a “hidra revolucionária”. As Cartas e o cartismo eram, numa palavra, instrumentos e doutrina liberais conservadores e anti-revolucionários, ou seja, meios-termos entre a contrarevolução pura e a revolução à solta. E especificamente no contexto temporal da “era das revoluções”, que varreu em sucessivas vagas a Europa nas décadas de 1820, 1830 e 1840 (como já o fizera entre 1789 e 1815), Cartas e cartismo eram o antídoto das elites para o perigo, desde sempre teorizado por Tocqueville, de a “paixão pela igualdade” poder sobrepor-se à “paixão pela liberdade”. Tocqueville e todo o liberalismo conservador não queriam tal subversão, porque enquanto a igualdade conduzia normalmente as sociedades ao tumulto e à anarquia, só a liberdade, bem calibrada, conduzia as sociedades ao misto de progresso com ordem que deveria ser o segredo das novas monarquias oitocentistas erguidas ou restauradas depois da epopeia napoleónica.

III A “súplica” constitucional portuguesa de 1808

Em Portugal, os projectos de constitucionalismo outorgado são anteriores aos projectos de constitucionalismo produzidos em Cortes. É certo que a Carta Constitucional portuguesa foi outorgada somente em 1826, depois da vigência da primeira Constituição, elaborada pelo parlamento vintista entre 1821 e 1822, que espelhava o programa e conquistas da revolução liberal de Agosto de 1820. Sucede que o texto oferecido por D. Pedro IV a Portugal materializava um modelo de constitucionalismo régio moderado e de via média política cujas raízes remontavam aos primeiros anos do século XIX.

A pré-história desse constitucionalismo surgiu no contexto da primeira Invasão Francesa, perante a ausência da família real e do poder político metropolitano (já sedeados no Brasil), e a demissão imposta por Junot (o lugartenente de Napoleão no reino invadido) à Regência deixada em Lisboa pelo príncipe regente D. João. Aos olhos de algumas correntes da opinião pública portuguesa, e acima de todas à elite dos afrancesados, a integração de Portugal na órbita da Europa napoleónica não deveria ser vista como uma invasão ultrajante, mas antes como uma oportunidade para sintonizar o reino com a novidade liberal que chegava com os franceses. Imbuído deste pensamento, em Maio de 1808, o juiz do povo José Abreu de Campos propôs à Junta dos Três Estados que ela diligenciasse enviar ao “imortal Napoleão”, através de Junot, uma “Súplica” para que o Imperador viesse a outorgar a Portugal “uma Constituição e um Rei Constitucional”, que introduzissem em Portugal um regime liberal e

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