A biodiversidade à mercê dos mercados? reflexões sobre compensação ecológica e mercados de biodiversidade

AutorCarla Amado Gomes - Luís Batista
CargoProfessora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - Mestre em Direito; Advogado-estagiário
Páginas9-73

Este texto constitui a versão longa da intervenção oral da primeira autora nas I Jornadas de Direito do Ambiente da Região Autónoma dos Açores, realizadas no dia 30 de Março de 2012 na Universidade dos Açores, em Ponta Delgada. Registo aqui o meu reconhecimento ao Dr. Rui Cordeiro pelo empenho e entusiasmo com que se bateu pela concretização das Jornadas, e também pelo convite que me endereçou.

A compensação ambiental é um tema que me fascina e já de há algum tempo vinha pensando em escrever sobre ele. Contei, no desenvolvimento do texto, com a preciosa ajuda do Mestre Luís Batista, meu orientando de mestrado e hoje já Mestre, que realizou dissertação de mestrado nesta área ? ajuda de tal forma ampla que passou a co-autoria.

O texto é dedicado à Profª Doutora Heline Sivini Ferreira, que pela primeira vez me despertou para ele, num convite para palestrar na Faculdade de Direito da Universidade do Paraná, em Curitiba, em 2009.

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0. Introdução: biodiversidade e mercado, uma relação improvável?

O diagnóstico da tragédia da biodiversidade a que chegámos está feito: deparamo-nos com a maior extinção massiva de espécies desde que os dinossauros desapareceram da Terra, há 65 milhões de anos1. A explosão demográfica, a urbanização galopante, as necessidades energéticas, as alterações climáticas, são causas que concorrem para a situação emergencial em que o Planeta se encontra no que toca às perdas de biodiversidade. A biodiversidade é alvo fácil da cobiça humana, as suas captura e destruição não envolvem grandes meios e geram utilidades imediatas ? mas, reversamente, provocam perdas incomensuráveis e muitas vezes irreversíveis, no médio e longo prazo.

"A natureza não tem preço, mas tem um custo", de preservação, sobretudo. Demasiado fácil de destruir, demasiado difícil de rentabilizar ? o destino da biodiversidade parece traçado. E, no entanto, Relatórios como o TEEB Report demonstram que se pode ganhar dinheiro com a biodiversidade, aliando fruição a turismo, ou exploração a emprego2. A biodiversidade tem utilidades materiais e imateriais, directas e indirectas, actuais e futuras, que devem entrar na equação da gestão racional dos recursos para que os instrumentos, internacionais e nacionais, apontam. A valorização da diversidade biológica passa pela atribuição de um preço, desde logo, à sua existência e, acrescidamente, aos "serviços" ecológicos que proporciona ? por outras palavras, traduz-se em revelar utilidades até aí desconsideradas3.

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Nas palavras do Preâmbulo do DL 171/2009, de 3 de Agosto, "A biodiversidade, a diversidade da vida em todas as suas formas, inclui a diversidade genética, de organismos, de espécies e de ecossistemas, e proporciona reconhecidamente uma vasta gama de benefícios à humanidade. Os ecossistemas fornecem bens, como oxigénio, alimentos, medicamentos, vestuário, materiais, pesticidas, e serviços, como a purificação de águas, a regulação do clima, a polinização, a fertilização do solo ou a protecção contra desastres naturais. Para além destes serviços, cujo valor económico, embora frequentemente desconsiderado, pode ser identificado e quantificado, a biodiversidade também detém atributos intangíveis de elevado valor estético, emocional, cultural, social e ético".

A descoberta dos "valores" inerentes à biodiversidade, sobretudo do económico, torna a associação desta realidade com a do mercado de títulos de emissão de gases com efeito de estufa ? mecanismo introduzido pelo Protocolo de Quioto e em funcionamento (a título de mercado obrigatório) na União Europeia ?, inevitável. Neste, trata-se de atribuir um valor à emissão de CO2, por tonelada, para a atmosfera, poluição que até então fora desconsiderada enquanto custo do processo produtivo e passou a ser encarada como uma externalidade negativa, devendo os operadores custear os títulos que suportam as emissões; no mercado de biodiversidade, a ideia é atribuir um valor à perda de elementos naturais ou de utilidades ecológicas destes e reclamar de quem realiza intervenções que degradam a biodiversidade uma compensação por equivalente. Em ambos os casos, e em síntese, o mercado serve para fazer circular títulos que possam validar as intervenções lesivas.

Se é verdade que o mercado de títulos de emissão tem filiação directa no Protocolo de Quioto, não menos certo é que falha aos mercados de biodiversidade a identidade de condições de operacionalidade, concretamente, no que tange a fungibilidade dos componentes ambientais em jogo. Apesar das dúvidas expressas sobre a sua criação, tanto nos EUA, como na Europa ? como se verá no decurso do texto ?, o legislador português foi sensível à ideia e já foi preparando a sua entrada no ordenamento jusambiental, como se pode constatar no texto do DL 171/2009, de 3 de Agosto (que criou o Fundo para a conservação da natureza e da biodiversidade = FCNB). Com efeito, os artigos 2º/2/e) e 2º/3 deste diploma avançam claramente a hipótese de implementação de mecanismos de mercado e da introdução de créditos de biodiversidade.

Cumpre, pois, indagar como se desencadeou esta ideia, analisar as suas concretizações e testar a sua adequação aos princípios de prevenção, gestão racional e responsabilização, vigentes no Direito do Ambiente.

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1. O instituto da compensação ecológica na origem da mercantilização da natureza

Na base dos "mercados de biodiversidade" está o instituto da compensação ecológica, através do qual se colmata uma lesão provocada no meio ambiente criando um benefício que neutralize a perda. Esta compensação pode, no quadro legislativo actual, surgir em dois momentos diversos: antes da intervenção e depois da intervenção, rectius, antes de um dano previsível e depois de um dano efectivo. É esta dualidade que convém explicar.

1.1. Ponto prévio: compensação ex ante e compensação ex post

A compensação é uma modalidade de reparação do dano contemplada no instituto da responsabilidade civil. Trata-se de um sucedâneo ou complemento da restauração in natura, que actua quando esta não é fáctica ou economicamente possível (por excessivamente onerosa), ou quando é insuficiente (cfr. o artigo 566º/1, 1ª parte, do CC). Se a responsabilidade civil tem uma dupla função, reparatória e penalizadora, o que se pretende é tornar indemne uma esfera jurídica que sofreu uma lesão, deixando-a o mais próximo possível do estado em que se encontrava quando a lesão sobreveio e censurando patrimonialmente o lesante. No Direito Civil, a compensação prevista no artigo 566º traduz-se num equivalente pecuniário e pode, teoricamente, despontar em qualquer hipótese de dano, quer de bens fungíveis quer de bens infungíveis.

No Direito do Ambiente, o artigo 48º da LBA traça uma hierarquia de soluções similar: restauração in natura, com reposição do estado anterior à infracção "ou equivalente"; ressarcimento pecuniário, quando não for "possível" a restauração natural, em montante a definir em lei especial. Deve observar-se que a LBA lida com um conceito de dano amplo, fortemente antropocêntrico, como a leitura do artigo 40º confirma - concepção que terá justificado a "colagem" ao Código Civil. Não é este, no entanto, o referencial que devemos hoje ter em conta.

A lógica primeira e desejavelmente única do Direito do Ambiente deveria ser a da prevenção ? é ela que se destaca no elenco das tarefas de protecção do ambiente inscritas no artigo 66º/2 da CRP, logo na alínea a), como é ela que tem a primazia na lista de princípios apresentada na LBA, no artigo 3º/a).

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Contudo, porque numa sociedade altamente industrializada, os danos ao ambiente são inevitáveis, a responsabilização teria identicamente que constar da pauta de princípios orientadores ? como consta, efectivamente, no fecho do artigo 3º da LBA [alínea h)] e também, ainda que não da forma mais clara, no artigo 52º/3/a) da CRP. O DL 147/2008, de 29 de Junho (=RPRDE), transpondo a directiva 2004/35/CE, do Parlamento e do Conselho, de 21 de Abril, veio dar operacionalidade à noção de dano ecológico, assentando, precisamente, na dupla vertente prevenção/reparação deste.

É deste diploma que resulta a metodologia de reparação do dano ecológico, dano que se há-de traduzir numa 1) alteração 2) significativa 3) adversa 4) mensurável do estado de um componente ambiental ou da redução da sua aptidão para gerar "serviços" ? cfr. o artigo 11º/1/d) e e) do RPRDE. Tal metodologia encontra-se descrita no Anexo V do RPRDE, traçando uma hierarquia de soluções não exactamente coincidente com o disposto no artigo 48º da LBA, uma vez que refere reparação primária, complementar e compensatória, eliminando a atribuição de quantias pecuniárias "a...

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