Atitularidade das criaçóes intelectais narelagáo de trabalho: soluçóes e problemas no direito portugués

AutorM.a Victoria Rocha
Páginas353-379

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  1. A imagem do criador ou inventor solitario, independente, está, cada vez mais, ultrapassada. A prática contemporánea demonstra que grande parte das invencoes sao efectuadas por trabalhadores dependentes e, em cada vez mais sectores, os autores trabalham em equipa sob direccáo de urna entidade empregadora.

    Na área do Direito Industrial (ex: patentes, modelos de utilidade, modelos e desenhos) o empenho das entidades empregadoras numa política de incentivo as invencoes de assalariados tem resultados directos no processo de inovacáo, investigacao e desenvolvimento da empresa e do próprio país.

    Nao é por acaso que o Japáo, que se afirma como urna nacáo basea-da na propriedade intelectual, incentiva a todos os níveis a actividade inventiva na empresa. Merecem igualmente destaque, neste contexto, entre outros, os ÉUA, a Alemanha, a Inglaterra e a Franca1

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    Nao se pode também ignorar a importancia numérica dos autores assalariados em sectores como a imprensa, o design industrial, bem como ñas áreas directamente ligadas á sociedade da informacáo, como o multimedia e os programas de computador.

    Muitos artistas intérpretes estao vinculados a empresas por contratos de trabalho.

    O Direito de Autor, os Direitos Conexos e o Direito Industrial sao, portante, forjados a relacionar-se com o Direito do Trabalho, no ponto em que se cruzam trabalho, criagáo e invengáo.

    O que há de comum a estas tres categorías de trabalhadores dependentes —autores, artistas intérpretes e inventores— consiste no facto de o trabalho poder ter como resultado ura bem imaterial, devido á conju-gagáo da actividade da empresa com a criatividade, o rasgo inventivo ou o talento do trabalhador (ou dos trabalhadores em equipa). Nao seria razoável ignorar a diferenga entre este tipo de trabalho e aquele que decorre da mera execugáo de instrugoes do empregador. A distingáo entre labor e opus reveste aqui um particular significado2.

    O estatuto deste tipo de trabalhadores é híbrido. A remuneragáo obtida como contrapartida do trabalho prestado nao será, em regra, suficiente para justificar que a titularidade dos direitos sobre a criagáo imaterial pertenga á entidade empregadora. Mas, por outro lado, nao se pode ignorar que a empresa investiu, forneceu os meios, criou as con-digoes para que o bem imaterial pudesse surgir.

    Enfrentam-se dois tipos de interesses e, portante, duas lógicas. Os interesses da empresa seráo no sentido de ser a titular dos direitos sobre o bem imaterial. Admitir a titularidade a seu favor tem subjacente urna lógica pragmática: se a empresa investe, deverá ter o retorno. Privile-gia-se a exploragáo relativamente á criagáo.

    Admitir a titularidade a favor do trabalhador, significa privilegiar a criagáo e, portante, obedece a urna lógica idealista, individualista.

    Há que fazer, contudo, concessoes a ambos os tipos de lógicas. Para que o regime seja razoável, haverá que fazer concessoes a favor do investimento e a favor da criagáo. Quer o empregador quer o trabalhador deveráo estar, de alguma forma, associados a exploragáo da obra.

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    Constatada esta necessidade, sao múltiplas as possibilidades de res-posta. Varias solugoes tém sido propostas e/ou adoptadas3.

    Existe urna aproximado entre os regimes propostos actualmente no ámbito do Direito de Autor (e Direitos Conexos) e as solugoes tradicionais do Direito Industrial.

    O problema coloca-se cada vez com mais acuidade á medida em que evolui o mercado da criacáo artística, designadamente, através das novas obras protegidas e dos novos modos de criacao no ambiente digital. O postulado do autor independente e solitario, sob o qual assentam as legislacóes de tradigáo continental em materia de direito de autor — e a nossa nao é excepgáo— é, cada vez mais, urna ficgáo4. A crescente importancia económica das criagoes dos trabalhadores dependentes tem incidencia directa no direito contratual de autor, que, em regra, assenta num formalismo apertado, em muitos casos com proibigáo de cessao global de obras futuras. Um regime deste tipo é pouco adequado as necessidades de funcionamento da empresa. Por isso, um pouco por todo lado, se cede a necessidade de investir, cada vez mais, a entidade empregadora, a título originario, nos direitos patrimoniais de autor das obras realizadas pelos seus trabalhadores, ou se admitem presungóes de cessao de direitos patrimoniais a favor da empresa, ou, de forma mais modesta, se suaviza o apertado formalismo em materia de direito contratual de autor5.

    No nosso Direito de Autor temos exemplos de todas estas modalidades.

    Todavía, por muito que o Direito de Autor (e Direitos Conexos) se aproxime do Direito Industrial, dito de outro modo, por muito que se privilegie o investimento, um regime unitario para todos os ámbitos do Direito Intelectual parece-nos desadequado. O conteúdo pessoal do direito de autor (e dos direitos conexos dos artistas intérpretes) deverá sempre ser salvaguardado.

    O Direito de Autor em cuja tradigáo nos filiamos, o Direito de Autor de tradigáo continental, assenta no primado da criagáo (autor pessoa física) e num conjunto de faculdades/direitos pessoais que constituem um todo com as faculdades/direitos de carácter patrimonial6. EstePage 356núcleo de faculdades/direitos pessoais (em que se destacam os direitos de paternidade, de divulgacáo, de defesa da genuinidade e integridade da obra e de retirada), embora possa sofrer algumas limitacoes em funcáo das finalidades decorrentes do contrato de trabalho, deve permanecer na esfera do trabalhador autor ou trabalhador artista intérprete. Nessa medida, sempre haverá uma diferenca fundamental relativamente aos direitos conferidos aos inventores pelo Direito Industrial7

  2. Comparando, no momento actual, o regime instituido pelo Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC) para a proteccáo dos autores, trabalhadores dependentes e dos artistas intérpretes e o regime previsto pelo Código da Propriedade Industrial (CPI) para os inventores em circunstancias análogas, temos que constatar que há uma proximidade de regimes maior do que a tradicáo de direito de autor em que nos inserimos, aparentemente, deixaria supor. Ressalva-dos os direitos pessoais (impropriamente designados no CDADC como «direitos moráis»), e mesmo esses atenuados em determinadas áreas sensíveis (cfir. programas de computador e bases de dados), denota-se uma forte preocupacao com a tutela do investimento, através de diversas fórmulas.

    1. A fórmula mais tenue consiste em suavizar o formalismo aper-tado a que está sujeito, em regra, o direito contratual de autor8.

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      Quando a obra é criada no ámbito de um contrato de trabalho, o autor continua a ser o trabalhador. Nao é por forca do contrato de trabalho que o principio da autoría é derrogado (cfr. art. 11.° CDADC).

      Isto nao significa, contudo, que o empregador nao possa ser titular de direitos de autor. A obra realizada no ámbito de um contrato de trabalho tem vocacáo para pertencer áquele por conta de quem é realizada e sem a qual nao existiría. Podem ser, por isso, atribuidos direitos patri-moniais de autor a entidade empregadora, desde que o criador intelectual, pessoa física, esteja de alguma forma associado a exploracáo da obra.

      Sempre que os direitos patrimoniais sejam transmissíveis —como é a regra decorrente do art. 27.°, n.° 3, CDADC— o trabalhador dependente pode transmitilos ao seu empregador.

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      Nao se pode dizer, todavía, que o principio da autoría sofra aquí desvíos, urna vez que apenas podem ser cedidos os direitos patrimoniais que a lei nao considere intransmissíveis (por exemplo, o direito de sequéncia, previsto no art. 54.° CDADC, é intransmissíveí em vida) e que permanecem na tituíaridade do autor, pessoa física, os direitos pes-soais (denominados «direitos moráis»), que sao inalienáveis, irrenun-ciáveis e imprescritíveis (cfr. arte. 1 Io, 27.°, n.° 1 e 56.°, n.° 2 CDADC).

      O nosso legislador, aparentemente, privilegia o acto de criagáo, por contraposigáo a exploracáo da obra, como regra geral.

      O contrato de trabalho nao importa a cessáo implícita de direitos sobre a obra á entidade empregadora, como resulta do regime decorrente dos artigos 14.°, n.° 1 e 15.° CDADC.

      Os direitos de autor estáo ligados ao acto de criagáo e o salario remunera a actividade do trabalhador autor, nao importa a transmissáo dos direitos decorrentes da sua criagáo.

      O artigo 14.°, n.° 1 CDADC assenta no principio da autonomía da vontade, traduzido na liberdade de contratar e fixar o conteúdo da cessáo dos direitos de autor.

      A tituíaridade a favor do criador intelectual ou da entidade empregadora determina-se de acordó com o que for convencíonado9.

      Urna vez que estamos perante um regime específico, e a norma nada diz quanto á forma de transmissáo, parece razoável admitir a liberdade de forma, de acordó com o art. 219.° CC, ao contrario do que é a regra geral em materia de transmissáo de direitos de autor (cfr. arts. 40.° e ss. CDADC), nao parecendo, inclusive, haver aqui os constrangimentos que se colocam a transmissáo de obras futuras (cfr. art. 48.° CDADC).

      Na falta de convengáo, presume-se que a tituíaridade do direito per-tence ao criador da obra, de acordó com o n.° 2 do art. 14.° (na versáo inicial do CDADC — DL 65/85, de 14 de margo— a presungáo era des-favorável ao criador intelectual).

      A presungáo contida neste no n.° 2 do art. 14.° CDADC parece nao ter quaiquer sentido útil, urna vez que, se nao houver convengáo sobre a atribuigáo do direito patrimonial de autor, é de aplicar a regra geral, contida no art. 11.° e no art. 27.°, n.° 1 CDADC, de atribuigáo do direito ao criador intelectual10.

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      Se o nome do criador da obra for omisso (obra anónima) a pre-suncáo da titularidade do direito (patrimonial) de autor funciona, a favor da entidade empregadora (n.° 3 do art. 14.°). Esta é urna pre-suncáo inris tantum, que funciona em sentido oposto á anterior.

      Se tivermos em conta que é pouco frequente que as obras de trabal-hadores...

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