A (Eventual) Transmissão automática da garantia bancária em caso de cessão do crédito garantido

AutorJosé Costa Pinto
CargoAbogado del Grupo de Práctica de Derecho Mercantil de Uría Menéndez (Lisboa)
Páginas34-45

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1 · Introdução

Não sendo uma garantia com raízes históricas tão profundas como outras de igual natureza, designadamente da fiança, a garantia bancária autónoma é hoje amplamente utilizada entre nós. Apresentando-se como uma garantia de fácil execução, é à sua autonomia relativamente à relação estabelecida entre o devedor e o beneficiário que a garantia bancária autónoma tributa o seu sucesso.

Apontada já como paradigmática do esforço de inovação do direito bancário1, a garantia bancária autónoma assegura ao seu beneficiário uma dupla segurança. Por um lado, o garante, por ser uma instituição bancária, é dotado de uma especial solidez financeira. Por outro lado, o garante não pode recusar o pagamento do montante garantido com base em eventuais vicissitudes relativas ao contrato estabelecido entre o beneficiário e o garantido.

Na maionia das garantias bancárias a una tildas, raras vezes, verifica-se que as partes estabelecem a cláusula de pagamento «à primeira solicitação». Nestes casos o beneficiário tem, ainda, a prerrogativa de obrigar a entidade bancária a pagar-lhe o

montante garantido «de olhos fechados», ou seja, imediatamente após ser interpelado para o efeito. Para a entidade bancária, que corre maiores riscos, a concessão de garantias bancárias «à primeira solicitação» é compensada pela exigência de pagamento de uma comissão mais elevada2.

Não se encontrando tipificada na generalidade dos países europeus, têm sido várias as questões que se têm colocado a propósito da garantia bancária autónoma. Entre estas, discute-se a susceptibilidade de se considerar aplicável à garantia bancária autónoma o princípio nos termos do qual em caso de transmissão de um crédito as respectivas garantias e outros acessórios, desde que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente (in casu do beneficiário) e não tenha havido convenção em contrário, o seguem.

No presente artigo, pretendemos precisamente analisar esta questão procurando, em particular, perceber de que forma é que a doutrina internacional e nacional tem tratado a mesma e, sobretudo, chegar a uma solução que, sendo coerente com a natureza dos institutos jurídicos aqui em causa, permita salvaguardar os legítimos interesses do cessionário de um crédito. Antes de abordarmos este ponto, faremos ainda uma breve análise à figura da garantia bancária autónoma.

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A transmissão da garantia bancária autónoma é, obviamente, um aspecto da maior relevância para o cessionário de um determinado crédito. A certeza que essa garantia acompanha (ou não) o crédito que adquire pode (e deve, no nosso entendimento) determinar a alteração dos termos a estabelecer no próprio negócio jurídico de aquisição a celebrar com o cedente.

Devemos, como nota introdutória, referir que as considerações infra a propósito da (eventual) transmissão automática da garantia bancária em caso de cessão do crédito garantido pressupõem sempre que as partes envolvidas nesses negócios jurídicos não estabeleceram qualquer disposição reguladora dos mesmos.

Refira-se ainda que, por uma questão de facilidade, ao longo do presente texto nos referiremos simplesmente a «garantia bancária» para nos referirmos a «garantia bancária autónoma».

2 · A garantia bancária
2. 1 · Noção e origens

Na esteira de Galvão Teles3, podemos definir garantia bancária como «a garantia pela qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro (...), sem poder invocar em seu beneficio quaisquer meios de defesa relacionados com esse mesmo contrato». Sempre que da garantia bancária resulte uma obrigação de pagamento «à primeira solicitação» esta é, para além de autónoma em relação ao contrato base, automática, porquanto o pagamento deve ser realizado mediante (mera) interpelação do beneficiário ao banco garante. Nestas situações, estamos perante uma garantia bancária «à primeira solicitação».

O recurso às garantias bancárias conheceu forte incremento com o desenvolvimento do comércio internacional na segunda metade do século XX, sobretudo após a crise petrolífera de 1973. Contudo, o envolvimento de instituições bancárias no comércio internacional verificou-se ainda antes deste período através do recurso à chamada «fiança bancária», que era, na prática, uma «sub-fiança» em que as entidades bancárias surgiam para dar credibilidade à garantia prestada.

Com efeito, ao exigirem que os garantes dos negócios que pretendiam realizar fossem instituições bancárias, os agentes económicos procuravam obter uma garantia mais sólida, designadamente que fosse prestada por entidades cuja solvabilidade e credibilidade fosse facilmente determinável. Como defende Antunes Varela «as pessoas singulares ou empresas que mais facilmente se disporiam a afiançar as dividas das empresas do seu Estado não gozavam as mais das vezes do prestigio económico-financeiro necessário para serem aceites como fiadores pelos empresários estrangeiros com os quais as empresas nacionais pretendessem negociar»4, pelo que, nas palavras do mesmo Professor, «nesse plano internacional foram os bancos nacionais, já com uma credibilidade económico-financeira superior à das restantes empresas, que começaram a aparecer a cada passo como sub-fiadores da operação, como fiadores do fiador»5.

Todavia, o factor decisivo que explica o crescimento exponencial do recurso à garantia bancária - e o correlativo abandono das «fianças bancárias» - foi a autonomia desta em relação ao próprio negócio base, característica essa que apresenta duas grandes vantagens.

Por um lado, sendo a garantia bancária autónoma em relação ao negócio base, esta não se encontra dependente ou sujeita às respectivas vicissitudes, ao contrário do que sucedia com a fiança bancária. Quer isto dizer que, independentemente da validade do negócio base, cujos requisitos legais muitas vezes poderiam nem sequer ser conhecidos por um parceiro internacional, a validade da garantia prestada não era afectada.

Por outro lado, a autonomia da garantia bancária em relação ao negócio base traduz-se ainda na insusceptibilidade de o banco garante opor ao agente beneficiário da garantia em causa os meios de defesa resultantes da obrigação garantida, ao contrário do que acontece no caso da fiança e que, na expressão de Antunes Varela, era o «calcanhar de Aquiles» desta garantia6.

A garantia bancária apresenta outras vantagens que justificaram o seu surgimento massivo na prática comercial internacional. Romano Martinez e Fuzeta da Ponte referem a este propósito que através destaPage 36 garantia «pode evitar-se o dispêndio da prestação de caução, ao mesmo tempo que se associa o garante ao cumprimento de uma obrigação alheia, levando a que ele pressione o obrigado a cumprir pontualmente, sem ter de se imiscuir na relação deste com o credor»78.

2. 2 · Tipos e funções

Na prática comercial, que foi - como vimos - o berço da garantia bancária, esta tem sido utilizada com e para diferentes funções/finalidades. Assim, podemos distinguir diferentes tipos de garantias bancárias, consoante as respectivas funções/finalidades.

Entre as mais comuns, destacam-se as designadas «garantias de boa execução» (perfomance bonds) nos termos das quais a entidade bancária garante ao beneficiário o pagamento de uma quantia sempre que o mandante não cumpra, de forma integral e pontual, as obrigações que para si decorrem do contrato base.

Este tipo de garantia bancária começou por ser utilizado em contratos de empreitada, mas há muito que viu o seu âmbito de aplicação alargado aos contratos de prestação de serviços, aos contratos de compra e venda e até aos contratos de arrendamento. Um exemplo claro da utilização deste tipo de «garantias de boa execução» resulta da própria lei, designadamente do regime jurídico da urbanização e da edificação9, que estabelece que o particular interessado possa (entre outras garantias) entregar como «caução» à respectiva câmara municipal uma garantia bancária à primeira solicitação de forma a «garantir a boa execução das obras de urbanização» que tenha ficado de realizar no âmbito de um determinado processo de licenciamento10.

De igual forma comuns são as denominadas «garantias de subsistência de oferta» (bid bonds) pelas quais o banco garante assegura o pagamento de uma indemnização ao beneficiário na circunstância de o mandante não vir a celebrar um contrato a que se obrigou.

Um exemplo deste tipo de garantias (e, concomitantemente, das garantias de boa execução) encontram-se prevista no Código dos Contratos Públicos11, que prevê à possibilidade de o adjudicatário poder entregar uma garantia bancária como forma de caução destinada a garantir a celebração do contrato em causa num determinado procedimento e, bem assim, o exacto e pontual cumprimento de todas as obrigações legais e contratuais decorrentes do mesmo12.

Como terceiro tipo de garantias bancárias destacam-se as «garantias de reembolso» (repayment bonds), cuja finalidade, como a própria designação o indica, consiste na garantia prestada pelo banco garante ao beneficiário de devolução de uma quantia que este tenha entregue ao mandante.

Como fácil é de ver, o campo natural...

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