As perplexidades geradas pela ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho

AutorFilipe Fraústo
CargoAdvogado da Área de Direito Fiscal e Laboral de Uría Menéndez (Lisboa)
Páginas45-52

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A «heresia» de introduzir o legislador, no corpo algo paradigmático e ortodoxo do processo civil, as inovações que resultam dos artigos 3.º e 5.º da Lei n.º 63/2013, de 27 de Agosto, tem vindo a gerar, na doutrina e na jurisprudência, perplexidades diver-sas e profundas, que são as que hoje servem de mote à segunda parte deste VII Colóquio sobre Direito do Trabalho coorganizado pelo Supremo Tribunal de Justiça e pela APODIT – Associação Portuguesa de Direito do Trabalho, cuja oportuna iniciativa se aplaude.

Muitas têm sido falhas ou imperfeições apontadas ao legislador 1 na edição da malha normativa correspondente à Ação Especial de Reconhecimento da Existência de Contrato de Trabalho (que passamos a designar pelo siglema ARECT) e é sobretudo por causa ou com refúgio nessas falhas que aquelas perplexidades surgiram, nem sempre, porventura, com fundamento. Não podendo, nesta sede, pensar exaustivamente sobre cada uma delas, procuraremos, dar nota crítica das que consideramos mais relevantes.

A Lei n.º 63/2013, como resulta do seu artigo 1.º, institui mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de tra-

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balho subordinado, um dos quais a ARECT. Sem querer entrar aqui na discussão sobre o valor normativo de uma tal proclamação, afigura-se que não se pode menosprezar a sua existência, aliás bem explicada pelas iniciativas legislativas que estão na sua origem, mormente a subscrita por 35.008 cidadãos eleitores que, ao abrigo do disposto na Constituição (artigo 167.º, n.º 1) e na Lei 2, submeteram à Assembleia da República, em 16 de janeiro de 2012, o projeto que designaram por «Lei Contra a Precariedade» 3, em cuja Exposição de Motivos assinalaram justamente o propósito de «introduzir mecanismos legais de modo a evitar a perpetuação das formas atípicas e injustas de trabalho», designadamente sobre os «falsos recibos verdes», considerados um dos «vetores fundamentais da degradação das relações laborais com prejuízo claro para o lado do trabalhador», visando o «combate ao falso trabalho independente» (artigo 1.º) 4.

É pois como meio de ataque a uma prática social que o Estado-legislador assume a ARECT, e não como meio de defesa de interesses particulares – como adiante se comentará.

Independentemente da questão de saber se a Lei n.º 63/2013 era (de um ponto de vista técnico e já não apenas sociológico ou, sobretudo, político) necessária no ordenamento 5, deve em qualquer caso reconhecer-se que à mesma estão, pois, subjacentes razões de interesse público, que levaram à criação de novos meios de combate (administrativo e judiciário) à prática empresarial espalhada (mas não gene-ralizada!) de se procurar, de modo simulado e frau-dulento, fugir à aplicação do regime laboral (lato sensu) a situações jurídicas que, substancialmente, têm as características de contrato de trabalho subordinado, prática essa que se pretendem erradicar. Esses meios correspondem, segundo entendemos, àqueles meios úteis a que alude a Parte I da Carta Social Europeia, para a realização de condições próprias a assegurar o exercício efetivo dos direitos e princípios nela consignados, designadamente o direito a condições de trabalho justas ou, como refere o artigo 7.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, justas e favoráveis 6, com a conformação mínima do catálogo dos direitos constitucionais fundamentais dos trabalhadores subordinados (quer dos que têm a natureza de direitos, liberdades e garantias, quer dos de natureza análoga, a que se aplica o regime dos primeiros nos termos do artigo 17.º da Constituição), e dos demais que decorrem daqueles instrumentos internacionais e das restantes fontes de direito laboral pertinentes.

Mais discutível é a questão de saber se, como amiúde se refere, nesse se inclui também o da sustentação da posição financeira do Estado e da Segurança Social.

PEDRO PETRUCCI DE FREITAS observa, por exemplo, que o «recurso indevido à figura da prestação de serviços em situação de existência de uma verdadeira relação de trabalho subordinado tem diversas implicações negativas laterais, entre as quais, o prejuízo que as mesmas acarretam para a sustentabilidade dos sistemas de pensões em face da entrada tardia dos jovens no mercado de trabalho propriamente dito e pela menor entrada de contribuições que o trabalho dissimulado (e também o trabalho não declarado) representam, para além de implicar uma concorrência desleal entre empresas» 7. Do mesmo modo, ALBERTINA PEREIRA 8, na justificação da «índole marcadamente pública» do escopo da ARECT, considera que «a falsa contratação em regime de contrato de prestação e

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serviços constitui um grave problema social que não somente afecta os trabalhadores envolvidos, que vêm assim aumentar a sua precaridade e insegurança laboral, como também a própria sociedade no seu conjunto, uma vez que o Estado, por essa via, se vê impedido de cobrar as devidas contribuições à segurança social, bem como os pertinentes impostos, com os inerentes prejuízos no que toca, quer à sustentabilidade do próprio sistema de segurança social, quer à salvaguarda do bem comum».

Estas afirmações são apenas parcial ou atenuadamente certeiras, pelo menos quando o falso trabalho independente seja formalmente tratado como tal pelas partes envolvidas. Como refere JOÃO RATO 9, «do ponto de vista da defesa dos interesses patrimoniais do Estado, de natureza fiscal e parafiscal, não há [com a ARECT] ganhos significativos, uma vez que o montante dos descontos para a Segurança Social sempre estaria assegurado pelas contribuições directas do próprio trabalhador, falso independente, o mesmo sucedendo com os impostos devidos em razão dessa relação jurídica». Além disso, recordamos que, em qualquer relação de prestação de serviços, as obrigações contributivas que financiam o sistema previdencial não são apenas dos trabalhadores independentes mas também das próprias «entidades contratantes» 10, ou seja, das pessoas, singulares ou coletivas, com atividade empresarial, independentemente da sua natureza e das finalidades que prossigam, que no mesmo ano civil beneficiem de pelo menos 80% do valor total da atividade de trabalhador independente, de acordo com o artigo 140.º, n.º 1, do Código Contributivo.

Seja como for, existirão, para além do interesse público na realização de condições próprias para o exercício efetivo do direito a condições de trabalho justas e favoráveis, nas dimensões assinaladas, outros interesses públicos subjacentes (a tutela da leal concorrência entre empresas será um deles, como também assinalam os autores acima citados), mas de intensidade porventura menor.

A frequente conivência prática, passiva ou ativa, dos prestadores de trabalho com a conduta empresarial fraudulenta a que acima se fez referência é quase sempre produto de verdadeiro estado de necessidade: a alternativa real ao trabalho falsamente independente é invariavelmente o não trabalho 11 ou o trabalho negro, e não o trabalho subordinado. Mas existem casos em que o intuito defraudatório é bilateral ou até mesmo exclusivo do prestador, designadamente quando o mesmo se encontre legal ou contratualmente impedido de se vincular mediante contrato de trabalho subordinado ao beneficiário da sua atividade. Daí que se entenda que, quando existe – e serão certamente muitos os casos – interesse do fictício trabalhador independente no reconhecimento da existência de contrato de trabalho, esse interesse é, no que respeita à ARECT, apenas reflexa ou indiretamente tutelado, o que é confirmado pela possibilidade, por exemplo, de ação ser julgada procedente sem que o prestador de trabalho tenha dela prévio conhecimento sequer (Código de Processo do Trabalho, artigos 186.º-M, primeira parte, e 186.º-L, n.º 4). A proteção do interesse do prestador de trabalho não se pode considerar por isso também objeto da ARECT nem releva sequer para a interpretação do respetivo regime

Já foi afirmado que a alteração que, no artigo 26.º do Código de Processo do Trabalho, foi introduzida pelo artigo 3.º da Lei n.º 63/2013, atribuiu a esta espécie processual natureza não apenas urgente como também oficiosa 12. Pese o caráter polissémico

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deste adjetivo, temos dúvidas quanto a esta afirmação, nos termos em que é feita: é que, apesar de ter passado a ARECT a estar efetivamente prevista na al. i) do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo do Trabalho, que tem por epígrafe (sem valor normativo) «Processos com natureza urgente e oficiosa», a verdade é que, em termos sistemáticos, esse n.º 1 do preceito apenas abrange os processos que têm natureza urgente e o seu n.º 3 limita o caráter oficioso às ações emergentes de acidente de trabalho e de doença profissional, não o tendo o legislador esten-dido à ARECT.

Percorrendo o regime da nova ação, encontram-se, ainda assim, traços de oficiosidade, o mais marcante nos parecendo ser o que resulta do n.º 8 do artigo 186.º-O do Código de Processo do Trabalho, que determina que a sentença que reconheça a existência de um contrato de trabalho fixa a data do início da relação laboral; essa fixação, segundo julgamos, parece ter o legislador pretendido (porventura com excesso de generosidade) ser independente de um correspondente pedido autónomo que o Ministério Público tenha formulado na petição inicial 13, sendo por isso o conhecimento oficioso e de natureza constitutiva neste ponto. Seja como for, não pode a fixação ser feita sem que ao Ministério Público e ao réu (e ao prestador de trabalho, quan- do tenha intervenção principal na ação) seja dada a oportunidade de se pronunciarem, por força do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil.

Também no n.º 1 do artigo 186.º-N se prevê que, não sendo oferecida contestação, seja proferida decisão condenatória a não ser que ocorram evidentes exceções dilatórias (ou o pedido seja manifestamente improcedente): mas a oficiosidade do conhecimento destas exceções...

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