O conflito de deveres e o abuso de confiança fiscal

AutorAssunçao Magalhaes Emenezes , Tito Arantes Fontes
CargoAdvogados Dpto Der.Púb. y Proc. de Uría y Menéndez (Lisboa)
Páginas46-59

1 · INTRODUÇÃO: O PROBLEMA DO CONFLITO DE DEVERES NO CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL

O tratamento da ilicitude -ou, mais concretamente, do conflito de deveres- no âmbito do crime de abuso de confiança fiscal -quer enquanto contemplado no artigo 24.º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, quer nos termos em que actualmente se encontra previsto no art. 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias- tem sido alvo de uma já vasta e conturbada polémica.

Entre aqueles que tendem a admitir a possibilidade da existência da causa de justificação do conflito de deveres no crime de abuso de confiança fiscal e os que a têm vindo a rejeitar, pouco se tem pronunciado a Doutrina. A Jurisprudência, por sua vez, apesar de parca, tem-se demonstrado absolutamente unânime, declinando, sucessiva e absolutamente, qualquer hipótese de exclusão da ilicitude no âmbito desta incriminação fiscal.

Ora, não só porque se afigura um tema de altíssima relevância prática, mas por também se julgar que nesta matéria se tem assistido àquilo que, na verdade, se considera ser uma protecção cega e obstinada do tesouro público -rejeitando, a priori e in limine, a possibilidade de, em face da débil situação financeira de uma empresa, existir um concreto e efectivo problema de conflito de deveres entre o cumprimento das obrigações tributárias e a retribuição do trabalho prestado- impõe-se tratar a questão e concluir, como se faz, que importa reservar a incriminação para aqueles actos em que seja insuficiente a intervenção de outros ramos do direito.

Para tanto, analisar-se-á, em primeiro lugar, o tratamento legal e doutrinal das causas de exclusão da ilicitude, em geral, e do conflito de deveres, em especial, no Código Penal português, para, em seguida -e em face dessas mesmas considerações- examinar o crime do abuso de confiança fiscal e a intervenção da norma permissiva do conflito de deveres no âmbito do mesmo, de forma a concluir, em síntese, pela errónea aplicação de que a matéria em questão tem sido objecto por parte da Jurisprudência.

2 · DO CONFLITO DE DEVERES NO CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL

2.1 · Das causas de exclusão da ilicitude, em geral, e do conflito de deveres, em especial – o artigo 36.º do Código Penal

A valoração da ilicitude é, de facto, elemento necessário e fundamental para a qualificação de um facto como crime.

A ilicitude penal nasce, em primeira mão, da conformação de um facto com um tipo legal incriminador, exprimindo o tipo, por sua vez, um juízo de desvalor jurídico-penal relativamente a uma determinada conduta.

No entanto, este facto, apesar de típico, pode ser praticado em circunstâncias que exijam uma outra valoração, de forma a que não se considere unicamente o desvalor do comportamento típico, mas também outros valores igualmente prosseguidos pela ordem jurídica -considerada na sua totalidade, nos termos do n.º 1 do artigo 31.º do Código Penal- que, expressos em normas que justificam uma certa conduta, podem neutralizar o juízo contido naquele mesmo facto típico.

É este o juízo de licitude que ora nos ocupará, um juízo de valor mais genérico que neutraliza o referido juízo de desvalor -a tipicidade- e determina, afinal, que o facto típico não possa ser considerado ilícito.

Significa isto, então, que existe um conjunto de circunstâncias que permitem que o facto típico não assuma relevância jurídico-penal porque a própria lei o justifica, permitindo-se, nestes casos, a prática de factos que, em princípio, são por ela proibidos. O juízo de desvalor, geral e abstracto, em que se traduz o tipo incriminador, cede, assim, perante um outro nível de valoração, mais concreto e abrangente, que considera outras circunstâncias, que não as contempladas no juízo de tipicidade, e que fazem com que esse mesmo juízo de valor negativo se torne de valor positivo ou pelo menos neutro para o direito penal 1.

Também assim esclarece Eduardo Correia, referindo que para uma conduta ser criminalmente antijurídica, tem de ser, necessariamente, típica, mas não o será só por ser formalmente típica, pois «[...] a tipicidade é só expressão da ilicitude enquanto se considera um primeiro momento da valoração em que ela se esgota, ou seja, a consideração dos valores ou interesses jurídicos que devem ser protegidos pelo direito criminal. A valoração total é porém mais complexa e exige a resolução de um possível conflito entre a necessidade abstracta de proteger bens jurídicos cuja negação os tipos legais, em primeira linha pelo menos, exprimem e a consideração de outros interesses ou bens jurídicos. Daí que a ilicitude de uma conduta que resulta da sua subsunção formal a um tipo legal de crime possa ser ilidida pela existência de determinadas circunstâncias que, na valoração total da conduta, a excluem» 2.

São elas, então, as causas de justificação 3 ou causas que excluem a ilicitude 4, previstas nos artigos 31.º, 32.º, 34.º, 36.º, 38.º e 39.º do Código Penal, segundo as quais, «[...] o agente que cometa um facto previsto numa norma incriminadora (facto típico) não pratica facto ilícito sempre que o facto típico seja praticado em legítima defesa, no exercício de um direito, no cumprimento de um dever, etc.» 5.

As causas de exclusão da ilicitude visam, assim, estabelecer os limites dentro dos quais se admite, como lícita, a lesão de um bem jurídico tutelado pelo direito penal, participando, por isso, da ordem axiológica constitucional, que, por sua vez «[...] háde fornecer os critérios decisivos para a determinação da juricidade e, portanto, para a fixação em concreto dos princípios gerais de justificação» -como sublinha Figueiredo Dias 6.

Ora, quais são, então, as causas de exclusão de ilicitude a considerar?

O n.º 1 do artigo 31.º contempla uma cláusula geral de justificação, pelo que as causas de justificação especificamente previstas na lei penal não equivalem a qualquer numerus clausus, podendo actuar quaisquer outras, implícitas ou supralegais, que a Doutrina e a Jurisprudência assim venham a considerar 7. O Código Penal estabelece -e define- as principais circunstâncias justificativas, o que faz por meio dos seus já mencionados artigos 31.º, 32.º, 34.º, 36.º, 38.º e 39.º, consagrando expressamente como causas de exclusão da ilicitude a legítima defesa, o direito de necessidade, o conflito de deveres e o consentimento, expresso ou presumido.

Assim sendo, e porque nele se centra esta análise, desde já se considerará o conflito de deveres, previsto no n.º 1 do artigo 36.º daquele diploma legal, que estabelece que «Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas de autoridade, satisfazer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar.»

O fundamento primeiro da causa de exclusão da ilicitude do conflito de deveres encontra-se na impossibilidade de cumprimento tempestivo ou simultâneo de deveres de agir que se demonstram em conflito -ad impossibilita nemo tenetur- e na consequente necessidade de dar prevalência a um e sacrificar o outro. O problema coloca-se, assim, em suma, sempre que perante um sujeito se coloquem diversos deveres, incompatíveis entre si, encontrando-se o mesmo obrigado ao cumprimento de todos e de cada um deles.

Ora, demonstrando-se isso impossível, deverá proceder-se a uma hierarquização dos deveres conflituantes, avaliando-se a natureza e importância deles, o que só se poderá fazer em absoluta referência aos bens jurídicos protegidos mas tendo sempre em atenção a importância do dever em questão perante o seu concreto titular. Ou seja, para uma correcta avaliação da importância dos valores jurídicos que aqueles deveres servem, não se poderão deixar de ter presentes as particulares razões que os especializam ou autonomizam como deveres de acção, o que significa que « [...] o valor do dever, talqualmente o valor do direito ou o objecto dele, o interesse, no art. 36.º se não formula abstractamente, mas em concreto, podendo derivar das circunstâncias do caso concreto.» 8 como refere Cavaleiro Ferreira. Assim vejamos, «v. g., se duas crianças estão em perigo de vida e um terceiro, pai de uma delas, só uma pode salvar, cremos que o dever mais importante será o de salvar o filho, pois além do dever geral de ajuda ao próximo especifica-se, em relação a uma das crianças, o dever de garante da sua segurança» 9.

A hierarquização de deveres refere-se -como não poderia deixar de ser- à hierarquização de interesses ou bens jurídicos que são tutelados por meio dos mesmos, como se mencionou, impondo-se ao agente, em caso de colidirem deveres jurídicos de importância diferente, sacrificar o menos valioso, de acordo com o princípio fundamental da ponderação de bens e de deveres conflituantes e de prevalência do preponderante.

A avaliação da hierarquia dos interesses -e assim dos bens jurídicos- em colisão não parece, de facto, tarefa fácil, tanto mais que o agente dispõe apenas de pontos de apoio que sempre deverão nortear a sua escolha, quais sejam «[...] a medida das sanções penais cominadas para a violação dos respectivos bens jurídicos, [...] os princípios ético-sociais vigentes na comunidade em certo momento, [...] as modalidades do facto, [...] a medida da culpa, [...] pontos de vista político-criminais. Como ainda e também, noutro plano, [...] a extensão do sacrifício imposto e [...] a extensão e premência do perigo existente [...]», nas palavras de Figueiredo Dias 10.

Casos há, porém, em que é a própria lei a estabelecer essa mesma hierarquia, de tal forma que o agente dispõe de um critério de escolha entre eles, como acontece «[...] no art. 36.º - 2 [“O dever de obediência hierárquica cessa quando conduzir à prática de um crime”]: este preceito significa, praticamente, que o dever de obediência hierárquica não é nunca superior ao dever de não cometer um qualquer crime [...].» 11.

Nos casos em que entre os deveres em conflito não se possa estabelecer uma hierarquia -casos estes em que há uma colisão...

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