A 1ª República e o sufrágio em Portugal: o debate de 1911 em perspectiva diacrónica

AutorMiriam Halpern Pereira
CargoCEHC/IUL-ISCTE
Páginas509-527

Page 509

A 1ª REPÚBLICA E O SUFRÁGIO EM PORTUGAL: O DEBATE DE 1911 EM PERSPECTIVA DIACRÓNICA

THE FIRST REPUBLIC AND THE UNIVERSAL VOTE IN PORTUGAL: THE DEBATE IN 1911 IN DIACRONIC ANALYSIS Miriam Halpern Pereira CEHC/IUL- ISCTE

SUMÁRIO. I. SUFRÁGIO UNIVERSAL E CONCEITO DE IGUALDADE. II. PROGRAMA REPUBLICANO DE 1891 E LEIS ELEITORAIS DE MARÇO E ABRIL DE 1911. III. OS DEBATES NA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE.
III.1. OS DOIS PROJETOS CONSTITUCIONAIS DAS COMISSÕES DA CONSTITUIÇÃO. III.2 CIDADANIA E PROJETOS CONSTITUCIONAIS.III.3 O VOTO COMO APRENDIZAGEM CÍVICA VERSUS VOTO DOS ILUSTRADOS. IV .ELEITORES, PARTIDOS E EXCLUÍDOS. IV.1. A COMPOSIÇÃO SOCIOPROFISSIONAL DO ELEITORADO E SUA EVOLUÇÃO. IV.2. OS EXCLUÍDOS. IV.3 OS PARTIDOS, PROGRAMAS E PRÁTICAS. CONCLUSÃO. BIBLIOGRAFIA.

Resumo: “ Dar a palavra ao povo” significou, durante o século XIX, o direito ao voto ou seja a institucionalização do sufrágio universal. Esta herança ideológica europeia oitocentista constituía uma questão relevante do programa republicano desde 1891. Mas a 1ªRepública Portuguesa nunca o adoptou. Este texto analisa esta vertente de recuo político, visando a compreensão das linhas de fractura do movimento republicano e as atitudes das camadas populares em relação ao sistema eleitoral.

Abstract: “To give the word to the people” signified during the XIX th. century the right to vote, that is the implementation of universal suffrage. This nineteenth century’s European heritage was an important point of the Republican Program since 1891. In spite of this, the 1st.Portuguese Republic never incorporated it. This text analyses this aspect of political retrocession, so as to understand the dividing lines in the republican movement and the attitudes of the popular strata towards the electoral system.

Palavras chave: sufrágio universal; Primeira República Portuguesa; Assembleia constituinte de 1911; partido socialista, movimento anarquista

Keywords: universal suffrage; First Portuguese Republic; constitutional Assembly of 1911; socialist party; anarchist movement.

Historia Constitucional, n. 15, 2014. http://www.historiaconstitucional.com, págs. 509-527 [notdef]

Page 510

[notdef]

I. SUFRÁGIO UNIVERSAL E CONCEITO DE IGUALDADE

“ Dar a palavra ao povo” significou, durante o século XIX, o direito ao voto de todos os cidadãos ou seja a institucionalização do sufrágio universal1.

A história do sufrágio universal confunde-se com o percurso do conceito de igualdade. Essa foi a questão política essencial do século XIX, que Rosanvallon apelidou de direito construtivo duma nova sociedade.2Quando a 1ª República se instalou em Portugal em 1910, o sufrágio universal masculino já estava em vigor em muitos países europeus e até, desde 1890, na vizinha Espanha monárquica. O sufrágio universal, uma herança ideológica europeia oitocentista constituía uma questão relevante do programa republicano de 1891. Mas a República nunca o aplicou. Rapidamente, a maioria republicana abdicou do alargamento do direito de voto, uma vez instalada no poder. Este texto analisa esta fase de recuo político, paradigmática da longa história em Portugal do sufrágio universal, visando contribuir para a compreensão das linhas de fractura que percorreram o movimento republicano em relação ao sistema eleitoral desde os primeiros passos do novo regime.

O sistema eleitoral escolhido por uma elite política constitui um indicador da sua atitude em relação à população. Num Estado liberal, o mecanismo eleitoral caracteriza os diferentes poderes, intervindo em grau variável no poder executivo, legislativo e judicial, e na administração central e local. Dada a função essencial do poder legislativo no sistema político liberal, as normas eleitorais que determinam a sua composição desempenham um papel simbólico e prático fundamental, definidor do sistema no seu conjunto3. Este

meu texto terá como centro o tipo de sufrágio e o direito de voto, deixando de lado outras normas do mecanismo eleitoral e o fenómeno do caciquismo.

As primeiras eleições republicanas tiveram como objecto a eleição da Assembleia Constituinte. Foram precedidas por divergências acerca da sua oportunidade. Havia quem tivesse preferido que o projeto de Constituição fosse elaborado pelo governo provisório, em ditadura, como foi o caso de Manuel de Arriaga e, segundo ele, também de outros membros do governo. “Creio que forças estranhas à vontade do governo não lhe deixaram realizar esta obra primacial da ditadura”4.

[notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef]

1Entre 1848 (França e Suiça) e 1918 (Grã-Bretanha) grande parte dos países europeus ocidentais foram adoptando o voto masculino alargado. A sua extensão às mulheres foi bem mais tardia na Europa, difundindo-se de nordeste para sul (Noruega 1913, Grã-Bretanha 1928, mas só em 1944-5 em França, em 1971 na Suiça e em Portugal em 1974).

2Maurice Agulhon, 1848 ou l’apprentissage de la République, Paris, 1973, p.16; Pierre Rosanvallon Le peuple introuvable, Histoire de la répresentation démocratique en France, Paris, 1998.

3Para o conjunto da legislação eleitoral desta época, essencial para compreender o funcionamento do sistema eleitoral na sua totalidade: 1. Os estudos de Farelo Lopes, destacando aqui o mais recente: “Direito de voto, regime de escrutínio, eleições feitas na 1ªRepública portuguesa” in André Freire, Eleições e sistemas eleitorais no século XX português, Lisboa, 2011; 2. Legislação eleitoral portuguesa,1820-1926, Lisboa,1998, compilada por Pedro Tavares de Almeida e o site instalado na BNP .

4Manuel Arriaga, Intervenção na sessão de 11 de Julho, in Actas da Assembleia Nacional Constituinte de 1911, Assembleia da República, Lisboa, 1986, p.81, fazendo contudo o elogio do texto constitucional em debate.

510

[notdef]

Page 511

[notdef]

II. PROGRAMA REPUBLICANO DE 1891 E LEIS ELEITORAIS DE MARÇO E ABRIL DE 1911

Vencida a corrente que desejava prolongar o período da ditadura, iniciou-se o debate da legislação eleitoral em Janeiro de 1911. A negação do acesso generalizado ao voto, um ponto programático fundamental do movimento republicano, nas normas eleitorais promulgadas em Março e Abril pelo governo provisório, impôs-se de forma inesperada. O debate que desencadearam é bem conhecido a dois níveis complementares, nacional e local. Dos estudos de A. Pinto Ravara e João B. Serra sobressai a prevalência final da aceitação dos limites do crivo eleitoral de Março de 1911, pelo menos a título provisório, mesmo entre os seus críticos mais acérrimos, devido à urgente necessidade de escolha de uma assembleia constituinte, remetendo-se o prosseguimento do debate para esta instância. É a polémica em torno da escolha do tipo de sufrágio no seio da Assembleia Constituinte que aqui nos interessou aprofundar, situando-a numa perspectiva diacrónica5.

III. OS DEBATES NA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE

3.1. Os dois projetos constitucionais das comissões da Constituição

Convêm ter presente os parâmetros constitucionais em que o debate eleitoral foi então retomado. Não houve uma mudança de atitude entre o “antes” e o “depois” da revolução somente em relação ao sufrágio universal. Também tiveram lugar duas outras mudanças de vulto no modelo constitucional. No programa do PRP (Partido Republicano Português) de 1891 delineara-se um modelo de constituição de inspiração helvética, portanto federalista, parlamentarista e em que a função presidencial coincide com a direção do poder executivo. Mas no projeto que a Comissão da Constituição, eleita a 20 e 21 de Junho pela Assembleia Constituinte, apresentou a 3 de Julho, seguira-se orientação oposta, propondo-se um modelo unitário, presidencialista e bicameral, fortemente inspirado na Constituição brasileira de 1891. A comissão alegaria que o curto espaço de tempo imposto e a existência de múltiplos modelos constitucionais tornava [notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef][notdef]

5A. Pinto Ravara analisou a posição dos diferentes grupos políticos no Porto e em Lisboa, os dois grandes polos de atividade política, António Pinto Ravara, “Acerca das eleições de 1911 in Clio, Revista da Faculdade de Letras de Lisboa, vol.3,1981,pp.127-151. João Serra estudou os meandros da política local e a sua articulação às estruturas partidárias de âmbito nacional, mediante a análise de um caso, a vila de Caldas da Rainha. João B Serra,. “Elites e competição eleitoral em 1911”, Análise Social ,1987, nº95 , 59-95. Debate na Constituinte abordado em F. Farelo Lopes, Poder político e caciquismo na 1ªRepública Portuguesa,1994,pp.78-84 e de forma genérica por Jorge F. Alves “A lei das leis. Notas sobre o contexto de produção da Constituição de 1911”, in Revista da Faculdade de Letras do Porto, História, III série vol.7, 2006,169-180. Mais recentemente, quando este estudo estava em fase de conclusão, foram editados os estudos de Ricardo Leite Pinto“ A Questão do “sufrágio universal” na Constituinte de 1911 e Elzira Machado Rosa “ O debate da cidadania feminina na Assembleia Constituinte de 1911, em J. Miranda (coord), A Assembleia Constituinte e Constituição de 1911...

Para continuar leyendo

Solicita tu prueba

VLEX utiliza cookies de inicio de sesión para aportarte una mejor experiencia de navegación. Si haces click en 'Aceptar' o continúas navegando por esta web consideramos que aceptas nuestra política de cookies. ACEPTAR