Questões jurídicas suscitadas a propósito das operações de transmissão de carteiras de crédito

AutorVerónica Martins Mendes E Maria Luísa Elvas
CargoAbogadas del Área de Mercantil de Uría Menéndez- Proença de Carvalho (Lisboa)
Páginas150-156

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Introdução

No contexto do Programa de Assistência Económica e Financeira a Portugal, acordado em maio de 2011 entre as autoridades portuguesas, a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional, o sistema bancário português viu-se forçado a um intenso processo de ajustamento.

Uma das principais consequências deste ajustamento, marcado essencialmente por um processo de desalavancagem acompanhado de um reforço da solvabilidade dos bancos, foi, precisamente, o recrudescimento de operações de transferência de carteiras de crédito por parte das instituições bancárias, na sua grande maioria compostas por non--performing loans (NPL) – termo que tem por referência o conceito de crédito em risco, determinado inicialmente pelo Banco de Portugal ao abrigo da instrução n.º 22/2011, tendo sido posteriormente alterado pela instrução n.º 24/2012.

De facto, perante este cenário, e apesar da sua reduzida dimensão comparativamente a outros mercados europeus, o mercado português de NPL tem sido identificado como um alvo de interesse para os investidores estrangeiros – a este respeito, estudos de diferentes consultoras, como a KPMG ou a PricewaterhouseCoopers, referem-se a Portugal como um país promissor neste âmbito (cfr., entre outros, estudos apresentados na terceira edição da NPL Meeting, um evento organizado em Itália pela Banca IFIS, Credit Village e PricewaterhouseCoopers, disponíveis em http://www.nplmeeting.it/, ou estudos publicados pelo European Portfolio Advisory Group da PricewaterhouseCoopers, publicados em http:// www.pwc.co.uk/transaction-services/portfolio--advisory-group.jhtml).

Feito este breve enquadramento, e não sem antes sublinhar que, com o presente artigo, não se pretende analisar exaustivamente este tipo de opera-ções, mas tão-só levantar e tratar de forma breve um conjunto de temas que, cremos, se revestem de interesse prático, cumpre entrar na análise das questões que nos propomos a tratar.

Forma e efeitos do negócio jurídico: cessão de créditos vs Cessão da posição contratual

A primeira das questões que pretendemos abordar respeita às diferentes qualificações do negócio jurídico que serve de base à transmissão de carteiras de crédito, questão que, embora à partida aparente revestir-se de um caráter fundamentalmente teórico, revelar-se-á decisiva para a determinação das consequências práticas da operação.

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Negócio base

Embora neste ponto nos pretendamos focar no confronto entre as figuras da cessão de créditos e da cessão da posição contratual, começamos apenas por notar que, independentemente da qualificação destas figuras como negócios policausais autónomos ou apenas como disciplinas de efeitos jurídicos passíveis de ser desencadeadas por qualquer negócio transmissivo (para um confronto entre as duas teses, cfr., entre outros, LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Cessão de Créditos, 2005, Almedina, páginas 285 e 286, e VARELA, João de Matos Antunes, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª edição, 1997, Almedina, páginas 299, 300, 394 e 395), ambas surgem num segundo plano da operação que, na sua base, poderá ter diversos tipos de negócios jurídicos, tais como a venda, a dação em cumprimento ou a doação.

Assim, quando ouvimos falar em operações de compra e venda de carteiras de crédito, estamos perante uma qualificação do negócio reconduzida ao tipo que se encontra na sua base, o qual, por sua vez, se reveste de suma relevância, dado que, tal como dispõem os artigos 425.º e 578.º, n.º 1, do Código Civil, a nulidade ou anulação da cessão de créditos ou da cessão da posição contratual, fundadas na falta ou nos vícios da vontade, bem como as suas prescrições de forma, dependem do negócio que lhe serve de base.

Objeto da transmissão operada

Ocupando-nos agora do confronto entre estas figuras, começamos por referir que a diferença mais imediata entre ambas reside na abrangência do objeto da transmissão operada por cada uma.

Enquanto que na cessão de créditos assistimos apenas a uma transmissão, pelo credor cedente para o terceiro cessionário, da sua posição creditícia, permanecendo o cedente como parte na relação contratual originária, na cessão da posição contratual verifica-se uma transferência global do complexo unitário de situações ativas e passivas do cedente para o cessionário, com a extinção subjetiva da relação contratual original entre o cedente e o cedido.

Este enquadramento clássico, segundo o qual a cessão de créditos será apenas uma transferência de uma simples parte da relação obrigacional complexa, tem vindo, no entanto, a ser questionado por alguns autores. Apoiando-se na doutrina geral sobre a complexidade das obrigações e no facto de, na falta de convenção em contrário, a cessão de créditos importar também a transmissão das garantias e outros acessórios do direito transmitido que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente (artigo 582.º, n.º 1, do Código Civil), têm estes autores defendido que a diferença entre estas figuras deverá aparecer «mais como uma diferença de grau relativamente ao conteúdo da posição contratual transmitida, que ocorre em ambos os casos, do que propriamente uma diferença de objeto» (LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, op. cit., páginas 314, 584 e 585).

Acessórios do crédito

Ora, a figura dos «acessórios do crédito» é absolutamente essencial, não apenas para compreender a perspetiva desta corrente doutrinária, mas também, e principalmente, para compreender a figura da cessão de créditos e o seu objeto.

Como acessórios do crédito temos, desde logo, as garantias associadas ao crédito transmitido. Embora se entenda pacificamente que a fiança, a consignação de rendimentos, o penhor e a hipoteca se transmitem para o cessionário com a cessão de créditos, dúvidas levantam-se no que toca à transmissão de garantias bancárias autónomas, do direito de retenção, da reserva de propriedade, da alienação fiduciária em garantia e à garantia prestada pelo cedente relativamente à existência e exigibilidade do crédito a terceiro por parte do cessionário (para uma análise da transmissibilidade destas e outras garantias e confronto entre posições doutrinárias, cfr. LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, op. cit., página 325 e seguintes, para uma análise concreta da questão relativa à transmissão automática das garantias bancárias, cfr. PINTO, José Costa, «A (eventual) transmissão automática da garantia bancária em caso de cessão do crédito garantido», Actualidad Jurídica Uría Menéndez, n.º 25, 2010, página 34 e seguintes).

Foquemo-nos, no entanto, nos «outros acessórios». Saber exatamente o que se considera abrangido nesta expressão não é tarefa fácil, tendo o tema sido já objeto de cuidada análise na doutrina (cfr., entre outros, LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes...

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