A relação de domínio ou de grupo como pressuposto de facto para a aplicação das normas do código das sociedades comerciais - o âmbito espacial em particular

AutorCatarina Tavares Loureiro - Joana Torres Ereio
CargoAbogadas do Departamento de Direito Comercial da Uría Menéndez- Proença de Carvalho (Lisboa)
Páginas46-61

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1. Introdução

Os grupos multinacionais de sociedades assumem, no contexto actual de globalização e de internacionalização das empresas, um relevo indiscutível.

Paralelamente, o tratamento jurídico 1 deste fenómeno -e, portanto, a análise e resolução de questões que envolvam grupos de sociedades plurilocalizadas- adquire uma importância crescente.

Os grupos de sociedades são regulados, de forma geral, no Título VI do Código das Sociedades Comerciais («CSC») -Sociedades Coligadas 2-, que trata de quatro tipos de relações de sociedades coligadas: (i) relações de simples participação 3; (ii) relações de participações recíprocas 4; (iii) relações de domínio 5 e (iv) relações de grupo, que abrangem as situações de domínio total (inicial ou supervenien-

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te), contrato de grupo paritário ou contrato de subordinação 6-7.

Para a análise de que nos ocuparemos, haverá que ter sobretudo presentes as noções de sociedades em relação de domínio 8 e em relação de grupo 9.

Deverá igualmente atender-se à dicotomia entre relações de coligação directas e bilaterais e relações de coligação indirectas e plurilaterais 10. Em várias normas do CSC 11, e por força da remissão para o artigo 483.º, n.º 2, do CSC, à titularidade directa de participações sociais por uma sociedade equiparam-se as situações de titularidade de participações sociais através de uma outra sociedade que dela seja dependente, directa ou indirectamente, ou que com ela esteja em relação de grupo, bem como a titularidade de acções de que uma pessoa seja titular por conta dessas sociedades 12. Voltaremos a esta questão mais adiante 13.

Uma das mais importantes -e mais controversas- questões que se colocam a propósito das sociedades coligadas plurilocalizadas prende-se com o âmbito de aplicação espacial das normas que integram o Título VI do CSC.

Aplicar-se-ão as normas que integram o Título VI a todas as coligações em que intervenha uma sociedade com sede em Portugal? Será a posição ocupada pela sociedade com sede em Portugal relevante para este efeito? Ou ter-se-á de considerar excluída a aplicação daquelas normas sempre que intervenha na coligação uma sociedade com sede no estrangeiro? - Trata-se,

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no fundo, de saber se e em que medida o Título VI do CSC é aplicável quando na coligação societária intervenha uma sociedade com sede no estrangeiro.

Por outro lado, sendo os conceitos de sociedade em relação de domínio e de grupo frequentemente utilizados noutras disposições espalhadas pelos demais títulos do CSC (bem como em diplomas avulsos), importa compreender o alcance das referências 14 feitas nessas normas e, em particular, aferir se as regras relativas ao âmbito de aplicação espacial fixadas no Título VI se devem ter como reproduzidas nestes casos, restringindo também o âmbito de aplicação dessas disposições.

É desta problemática que nos ocuparemos no presente artigo.

2. O âmbito de aplicação espacial do título vi do CSC
2.1. O artigo 3 , nº. 1, do CSC

O artigo 3.º, n.º 1, do CSC é a regra de conflitos nuclear em matéria de sociedades comerciais, estipulando que «as sociedades têm como lei pessoal a lei do Estado onde se encontre situada a sede principal e efectiva da sua administração» 15.

Com base nesta norma, as sociedades com sede em Portugal têm como lei pessoal a lei portuguesa e regem-se pelo CSC. Por conseguinte, as relações de coligação em que interviessem seriam, à partida, também reguladas, em geral, pelo CSC e, em particular, pelo Título VI, independentemente da localização da sede das demais sociedades intervenientes.

2.2. O artigo 481 , nº. 2, do CSC - o âmbito de aplicação espacial do Título VI do CSC

Ver nota 16

O artigo 481.º, n.º 2 17 afasta-se, contudo, da regra geral consagrada no referido artigo 3.º, n.º 1, dispondo que o regime previsto no Título VI do CSC (salvo os casos excepcionais aí indicados) apenas é aplicável a sociedades com sede 18 em Portugal.

Como tal, parece resultar desta norma que caso uma das sociedades em relação de coligação tenha a sua sede no estrangeiro, não serão aplicáveis a tal coligação, de forma geral, as normas previstas no Título VI do CSC 19.

2.3. As excepções previstas no artigo 481 °, nº. 2, do CSC

Nos termos do artigo 481.º, n.º 2, do CSC, são quatro os casos excepcionais em que as normas do Título VI se aplicam quer a sociedades com sede em Portugal, quer a sociedades com sede no estrangeiro:

2.3.1. Proibição de aquisição de participações - alínea a)

A alínea a) do n.º 2 do artigo 481.º do CSC vem estender a proibição prevista no arti-

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go 487.º do CSC 20 aos casos de aquisição, por sociedades com sede em Portugal, de participações de sociedades dominantes com sede no estrangeiro 21.

Esta norma foi (parcial e) tacitamente derrogada, quanto à aquisição de acções da sociedade dominante, pelo Decreto-Lei n.º 328/95, de 9 de Dezembro («Decreto-Lei n.º 328/95»), que introduziu os artigos 325.º-A e 325.º-B do CSC. Por conseguinte, esta alínea aplica-se actualmente apenas às aquisições de quotas.

A esta matéria voltaremos mais adiante 22. Em todo o caso, desde já avançamos que a solução vertida nesta alínea do artigo 481.º, n.º 2, do CSC é diametralmente oposta à consagrada no artigo 325.º-A, n.º 3, do CSC, que se aplica às relações internacionais de sociedades em que a socie-dade dominante é nacional e a dependente é estrangeira.

2.3.2. Deveres de publicação e declaração de participações - alínea b)

De acordo com esta norma, os deveres de publicação e declaração sobre a existência e o montante de participações previstos no CSC 23-24 incidem também sobre as participações detidas por sociedades portuguesas no capital social de sociedades com sede no estrangeiro, bem como as participações destas no capital daquelas.

2.3.3. Responsabilidade da sociedade dominante - alínea c)

Por força desta alínea, a sociedade com sede no estrangeiro que, segundo os critérios estabelecidos no CSC, seja considerada dominante de uma socie-dade com sede em Portugal, é responsável para com esta sociedade e os seus sócios minoritários, nos termos do artigo 83.º e, se for caso disso, do artigo 84.º do CSC 25.

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Assim, a sociedade dominante com sede no estrangeiro pode vir a responder solidariamente com os titulares dos órgãos sociais da sociedade dependente por si designados ou por si influenciáveis, pelos danos causados por estes à sociedade ou aos demais sócios 26.

Por outro lado, em caso de insolvência da sociedade dependente, a sociedade dominante pode vir a responder ilimitadamente pelas obrigações sociais contraídas após a aquisição das participações caso se prove que não se verificou a necessária separação patrimonial entre o seu património e o património da sociedade dependente 27.

2.3.4. Domínio total inicial - alínea d)

Esta alínea, introduzida no âmbito da reforma legislativa de 2006, pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, vem possibilitar a constituição de uma sociedade anónima unipessoal por uma socie-dade com sede no estrangeiro (estão, pois, em causa, as situações de domínio total inicial).

Sobre o alcance e a interpretação desta norma pela doutrina (e bem assim, sobre a crítica que é dirigida à mesma), debruçar-nos-emos adiante 28 .

2.4. Os casos de titularidade indirecta

Frequentemente, as relações de coligação societária estabelecem-se entre mais do que duas entidades, interpondo-se entre as sociedades participada e participante, dominada e dependente, subordinada e directora, totalmente dominada e totalmente dominante, uma ou mais entidades.

Vimos já 29, a este propósito, que o CSC equipara, em diversas normas relativas à coligação de sociedades, e por remissão para o artigo 483.º, n.º 2, do CSC, a titularidade indirecta à titularidade directa de participações sociais.

Interligando esta questão com a problemática objecto da presente análise, somos confrontados com uma questão fundamental.

Bastará, nos casos de titularidade indirecta, que as sociedades situadas nos pólos da relação de coligação tenham a sua sede em Portugal, para se poderem aplicar, de forma geral, as regras do Título VI do CSC? Ou será que a interposição, entre aquelas sociedades, de uma sociedade com sede no estrangeiro afasta, per se, a aplicabilidade das normas do Título VI do CSC?

Nesta matéria, inclinamo-nos para o entendimento segundo o qual a sede das pessoas singulares ou colectivas interpostas é irrelevante, sendo apenas determinante a sede das sociedades que se situem nos extremos da coligação 30.

De outro modo, abrir-se-ia a porta à fraude à lei, bastando, para o efeito, que se intercalasse uma sociedade com sede no estrangeiro numa relação de coligação entre sociedades portuguesas para afastar o regime do Título VI (e com ele, o regime próprio -e indesejado- de responsabilidade das sociedades totalmente dominantes).

2.5. A ratio do Título VI do CSC

Na tarefa de interpretação das leis, deve o intérprete, desde logo, procurar aferir a racionalidade que subjaz às normas sob análise, de modo a identificar os interesses que através das mesmas se...

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