One share, one vote - os tetos de voto e as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 20/2016

AutorJoana Torres Ereio
CargoAdvogada do Departamento de M&A/Private Equity da Uría Menéndez Proença de Carvalho (Lisboa).
Páginas96-106

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A one share - one vote rule

O princípio one share - one vote, traduzindo a ideia de correspondência plena entre a titularidade de ações e de direitos de voto, é tradicionalmente considerado como uma das regras de ouro do corporate governance.

Na base deste princípio está a premissa de que são os acionistas, na proporção das ações de que são titulares, os mais legitimados para tomar decisões relativamente à sociedade, na medida em que são eles quem suporta o risco económico associado a essas ações sendo, por conseguinte, também os mais interessados na maximização do valor da sociedade.

No entanto, ao longo do tempo, este princípio foi - e continua a ser - objeto de ampla discussão, sobretudo no palco internacional.

Desse debate resultou, de forma particularmente visível nos E.U.A., a alternância cíclica entre uma regulamentação mais favorável a este princípio e uma regulamentação mais flexível quanto à admissibilidade de desvios ao mesmo.

Entre os desvios à one share - one vote rule (control--enhancing mechanisms), incluem-se, por exemplo, as dual-class structures (seja com ações preferenciais sem voto, seja com ações com voto duplo ou múltiplo), os direitos especiais de controlo atribuídos a determinados acionistas (caso das golden shares), os tetos de voto (voting caps) e as participações em pirâmide (pyramid structures) ou cruzadas (cross--shareholdings) (cf., a este respeito, Lucían Aye Beb-chük, Reíníer Kraakman e George Tríantís, Stock Pyramids, Cross-Ownership and Dual Class Equity: The Mechanisms and Agency Costs of Separating Control From Cash-Flow Rights, Harvard Law School Olin Discussion Paper No. 249, 1999, págs. 4 e ss.).

Na Europa, o interesse sobre este princípio renasceu em 2002, com a contratação, pela Comissão Europeia, de um estudo sobre aspetos relacionados com ofertas públicas de aquisição, e que incidiu, em particular, sobre as (des)vantagens em tornar o princípio one share - one vote obrigatório a nível europeu - este estudo deu origem ao Report of the High Levei Group of Company Law Experts on Issues related to Takeover Bids, comummente designado de Winter Report (disponível em http://ec.europa.eu/

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internal market/company/docs/takeoverbids/2002-01-hlg-report en.pdf).

Este estudo começa por afirmar que as ofertas públicas de aquisição, podendo embora acarretar alguns riscos, são, em geral, benéficas para os acionistas e demais stakeholders e que as mesmas são influenciadas por uma multiplicidade de fatores, quer fatores gerais, quer fatores especificamente relacionados com as sociedades, incluindo-se nesta segunda categoria a proporcionalidade entre direitos de voto e risco económico (referindo-se que num mercado de capitais aberto, os maiores investidores institucionais preferem, à partida, investir em sociedades em que se verifique essa proporcionalidade). O estudo parte igualmente da constatação das grandes disparidades entre os países da União Europeia quanto a esses fatores, o que tem como consequência que os acionistas dos vários Estados Membros não possam ter nem expectativas equiparadas ao lançar uma oferta pública de aquisição nem oportunidades equivalentes de vender as suas ações no contexto de uma oferta pública -conclui-se, assim, pela falta de um "level playing field" em matéria de ofertas públicas de aquisição na União Europeia (cf. págs. 18 e ss.).

Como forma de permitir a criação do referido "level playing field" nesta matéria, o Grupo defende dois princípios essenciais: (i) shareholder decision-making: num cenário de oferta pública de aquisição, a decisão final (de vender ou não vender e a que preço) cabe aos acionistas (e não ao conselho de administração); e (ii) proportionality between risk bearing and control: a todo o capital devem ser inerentes os proporcionais direitos de controlo.

O Winter Report advoga, assim, genericamente a bondade da proporcionalidade entre titularidade de ações e direitos de voto, referindo que, não obstante a legitimidade e vantagens que os desvios a essa regra podem ter, dos mesmos não deve em caso algum resultar a frustração de ofertas públicas de aquisição ("ín the Group's view, proportionality between ultimate economic risk and control means that share capital which has an unlimited right to participa-te in the profits of the company or in the residue on liquidation, and only such share capital, should nor-mally carry control rights (...) inproportion to the risk carried. The holders of these rights to the residual pro-fits and assets of the company are best equipped to decide on the affairs of the company as the ultimate effects of their decisions will be borne by them. (.) The hol-der of the majority of risk-bearing capital should be able to exercise control. Capital and control structures

in a company which grant disproportionate control rights to some shareholder(s) should not operate to frus-trate an otherwise successful bid for the risk-bearing capital of the company." - cf. pág. 21).

Partindo deste princípio, o Grupo analisou de seguida a melhor abordagem para reforçar estas regras no mercado europeu.

No que à regra one share - one vote especificamente diz respeito, foi ponderada, de um lado, a sua imposição como princípio obrigatório de aplicação geral e, de outro, a sua obrigatoriedade apenas no contexto das ofertas públicas de aquisição, con-cluindo-se ser esta segunda alternativa a mais adequada.

Esta conclusão assentou nas dificuldades associadas, por um lado, à análise que seria necessária para avaliar a implementação de uma regra geral a este respeito e, por outro, à implementação dessa mesma regra, tendo em conta as diferenças nas formas de controlo, financiamento e funcionamento das empresas dos vários Estados Membros em que os desvios à one share - one vote rule se verificam, os objetivos servidos por esses mesmos desvios em cada um dos Estados Membros, os diferentes graus de evolução dos respetivos mercados, bem como o facto de os Estados Membros considerarem muitas vezes estes desvios justificados, designadamente, para fazer face a outras debilidades nos mecanismos de governance, e o facto de ser bastante provável que a proibição dos desvios desse azo à adoção de mecanismos equivalentes mas mais difíceis de identificar, o que perverteria a ratio da imposição da one share - one vote rule.

Resultou, assim, que se deveria implementar formalmente o princípio one share - one vote apenas no contexto das ofertas públicas de aquisição, tendo, para o efeito, o Winter Report recomendado a implementação da regra da não oponibilidade das restrições estatutárias e/ou contratuais em matéria de transmissão de valores mobiliários e direito de voto (break-through rule), que passou depois, com (duplamente) natureza opcional (de transposição como regra obrigatória, para os Estados - opt in / opt out -, e de adoção, pelas sociedades caso o respetivo Estado Membro opte por não a implementar com natureza imperativa) para a Diretiva 2004/25/ CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de abril de 2004 (Diretiva das OPAs - cf. os artigos 11.º e 12.º).

Entre nós, esta regra foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 219/2006, de 2 de novembro, que aditou o

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artigo 182.º-A ao Código de Valores Mobiliários ("CVMob").

De acordo com esta norma, as sociedades emitentes sujeitas a lei pessoal portuguesa podem (o legislador português optou, pois, por não atribuir força imperativa a esta regra) prever nos seus estatutos a suspensão, no cenário de lançamento de uma oferta pública de aquisição, da eficácia das cláusulas -constantes dos estatutos ou de acordos parassociais

- que prevejam limitações à transmissão de ações ou ao exercício do direito de voto, prevendo que as mesmas (i) não produzirão efeitos na assembleia geral convocada para a tomada de decisão de medidas defensivas e (ii) não serão oponíveis ao oferente que, na sequência da oferta, passe a deter pelo menos 75% do capital social com direito de voto da sociedade, caso em que tão-pouco poderão ser exercidos direitos especiais de designação ou de destituição de membros do órgão de administração.

Este preceito estabelece ainda que as sociedades que não exerçam integralmente esta opção não podem estabelecer um quórum deliberativo superior a 75% dos votos emitidos para a aprovação da alteração ou eliminação das referidas limitações.

O Winter Report incluiu ainda recomendações claras no sentido de aumentar a transparência e os deveres de informação quanto à estrutura acionista e de controlo das sociedades cotadas europeias ("However, in the Group's view one type of general, permanent rule, should be established in order to help create an integrated capital market in the European Union. Listed companies should generally be required to fully disclose their capital and control structures. Such a disclosure requirement is also essential for the protection of investors in order to enable them to assess the value of and risks related to their investment. Only on the basis of full disclosure can markets properly jud-ge the efficiency of companies with different capital and control structures. - cf. pág. 25).

Na esteira do Winter Report, vários estudos foram levados a cabo na última década acerca da one share

- one vote rule, visando, em particular, aferir se se deveria implementá-la como regra obrigatória de caráter geral.

No entanto, estes estudos não são totalmente conclusivos quanto à mais-valia da imposição da one share - one vote rule.

Em particular, concluem pela impossibilidade de afirmar que a implementação desta regra permite, per se, ganhos de...

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