De novo sobre a «licença» e outros negócios de disposição de bens intelectuais

AutorJosé de Oliveira Ascensão
Páginas73-90

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I Variações sobre o termo «licença» no direito intelectual

A palavra licença (licencia) é de uso generalizado no Direito Intelectual.

Tão generalizado que a doutrina se tem dispensado praticamente de toda a reflexão sobre a sua origem e justificação.

Mas fixar terminologia, neste domínio, vai muito além de um exercício formal, como veremos. Desde logo, cabe prevenir entendimentos discrepantes sobre as categorias gerais utilizadas.

Propriedade Intelectual corresponde, a nível mundial, ao ramo que abrange o Direito Autoral 1 e o Direito Industrial 2: é assim que figura por exemplo na designação da OMPI, Organização Mundial da Propriedade Intelectual 3.

Em todos os casos se defrontam essencialmente exclusivos; e manifestação destes seria a faculdade de licenciar, atribuída ao titular do exclusivo. Considerando vários países estrangeiros, verificamos que a figura tem larga expansão: é atribuída aos titulares do exclusivo, ou a quem por eles, a faculdade de conceder «licenças».

Não encerra à primeira vista nada de anómalo. Por exemplo, corresponde à terminologia constante da Diretriz da UE n.º 2008/95/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008, que aproxima as legislações dos

Estados-Membros em matéria de marcas. O art. 8 tem a epígrafe correspondente,

Licenças

; e o teor deste é seguido muito de perto nos n.os 1 e 2 do art. 48 da Lei espanhola n.º 17/2001 (Ley de Marcas).

O termo licença não se repercute apenas no Direito das Marcas: tende a invadir todo o Direito Intelectual 4.

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II O recurso à técnica do direito das coisas no direito autoral português

Há porém uma diferença mais profunda na lei portuguesa, que não pode já ser considerada como meramente (ou essencialmente) terminológica.

Essa diferença é a constante do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos (CDADC), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 63/85, de 14 de março, e objeto de sucessivas alterações posteriores. A matéria é regulada nos arts. 40 e segs., sob a epígrafe geral: «Da Transmissão e Oneração do Conteúdo Patrimonial do Direito de Autor».

Indo logo ao essencial: o art. 40 CDADC divide os atos de disposição do conteúdo patrimonial do direito de autor 5 em:

- transmissão

- oneração.

Porém, apesar de não constar da epígrafe, o mesmo art. 40.a prevê ainda uma terceira categoria:

- autorização (da utilização da obra por terceiro).

Quer a transmissão quer a oneração podem ser [art. 40.b)]:

- total

- parcial.

Desta forma, o Código não utiliza a noção de licença. Tudo se resolve por recurso a categorias comuns do Direito Privado, sem apelo àquela figura (que, como veremos, é anómala).

Qual é a origem da técnica que moveu o legislador autoral português? É esta: a lei estende ao Direito Autoral as categorias habitualmente usadas no Direito das Coisas, ou Direitos Reais. Aí, discute-se se os direitos reais menores se constituem por oneração ou por desmembramento da propriedade. O legislador autoralista acolhe-as a ambas. Poderia a constituição de direitos autorais menores fazer-se por desmembramento do direito de autor originário, quando uma ou mais faculdades são deste desmembradas, para ficarem na titularidade de outrem. Ou poderia fazer-se por oneração: o titular mantém os seus poderes, mas onerados por um direito constituído em benefício dum terceiro. Neste último caso o titular terá de sofrer a concorrência desse terceiro, enquanto o direito onerador se mantiver; mas quando este último se extinguir o direito maior automaticamente retoma a sua plenitude, sem necessidade de se proceder a um negócio de retrotransferência dos poderes que haviam sido cedidos. A isso se chama a elasticidade do direito maior.

Não cabe agora perguntar como a questão se coloca realmente no domínio do Direito das Coisas 6. Nem sequer verificar se no Direito Autoral (a «Propiedad Intelectual» na terminologia espanhola) a construção colhe ou não colhe. O que pretendemos deixar assente é que o uso da categoria licença não é uma fatalidade; nem é uma normalidade sequer. Pode fazer-se, mas pode não se fazer também.

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III O recurso à cesión na ley de propiedad intelectual e à licencia na ley de marcas

A Ley de Propiedad Intelectual também se dissocia do uso do termo licencia.

Particularmente importante é o título V, arts. 48 e segs., epigrafado

Transmisión de los derechos

. Aí usa-se quase indiscriminadamente transmisión e cesión, para referir a transmissão de direitos em vida. Mas não se fala em licencia.

Cesión é o outro termo relativamente específico do domínio intelectual e também expandido, aplicado a modalidades de transmissão dos direitos intelectuais.

No Direito Privado é usado em certas acepções específicas: são particularmente importantes a cessão de créditos, a cessão de herança e a cessão de quotas ou de participações sociais em geral. Mas é difícil entender porque não se utiliza aqui transmissão de direitos exclusivos, pura e simplesmente 7, porque o efeito é sempre o de uma transmissão. Até porque a transmissão pode ser total ou parcial, e as previsões de cesión constantes das leis abrangem inclusive transmissões totais do direito 8.

A referência à cesión cria numerosos problemas. Parece que o termo seria mais adequadamente usado para designar os negócios em que modalidades singulares de utilização ou exploração fossem atribuídas 9. Mas haveria muito que discorrer sobre o regime desses negócios e os seus efeitos. Não o podemos fazer aqui.

Já na matéria de Direito Industrial se acolhe o termo licencia, mas de modo que podemos dizer que a lei só participa pela metade desta terminologia. Usa pura e simplesmente, logo na epígrafe do art. 47, transmisión da marca. Porém, no art. 46, relativo aos princípios gerais da marca «como objeto de direito de propriedade», usa várias vezes «cessão da marca». Possivelmente para a distinguir de outras figuras, como a disposição apenas de uma fração no direito (ou de várias, em caso de contitularidade) 10.

Limitamo-nos a observar, por não ser este o nosso objeto específico, que também aqui o Código da Propriedade Industrial português (CPI) seguiu uma terminologia parcialmente diferente. Limita-se a contrapor transmissão a licença.

Regula a transmissão no art. 31 em geral, praticamente para todos os direitos industriais consagrados; e no art. 264 prevê especificamente as licenças de marca.

IV A licença como categoria do direito administrativo

Isso desperta a nossa curiosidade sobre o que a licença representa. Traduzirá devidamente a relação entre o titular do direito intelectual e o terceiro a quem

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são concedidos poderes de utilização do bem intelectual protegido? E particularmente, por ser este o nosso banco de ensaios prioritário: assim acontecerá no que respeita aos negócios de disponibilização de faculdades de utilização da marca? Pois aí, quer a lei portuguesa quer a lei espanhola vão a par: como vimos, ambas consagram efetivamente a figura da licença de marca.

Se refletirmos neste ponto, logo avulta uma realidade perturbadora e de que não se tem generalizadamente consciência.

Em sentido técnico, em Portugal o termo licença só se utiliza no Direito Privado no âmbito do Direito Intelectual 11. De resto, a licença é uma figura do Direito Público, particularmente do Direito Administrativo.

Nos outros ramos do Direito Privado há um termo que desempenha função equivalente: é o termo autorização. Se alguém permite que outrem invada a sua esfera jurídica, diz-se que autorizou (ou consentiu). As licenças seriam porém reservadas para qualificar certos atos de autoridade, portanto atos de entes públicos.

Mas então, o que justifica esta utilização insólita e erma do termo, no domínio do Direito Intelectual?

No plano imediato, temos antes de mais a influência estrangeira. O Direito Intelectual, desde o início, teve uma vertente internacionalista marcada. Os países exportadores de bens intelectuais, assim que aprovavam as leis internas que consagravam estes exclusivos, logo pressionavam os outros países para que adotassem leis internas que lhes dessem a eles, exportadores, a penetração internacional a que aspiravam. Isso conseguiu-se a partir da década de 80 do séc. Xix mediante instrumentos multilaterais, com a aprovação das Convenções de Paris e de Berna. E daí até hoje, a proteção internacional outorgada tem tido um incremento constante, que não dá mostras de abrandar.

Em consequência, não só as soluções adotadas são as propugnadas por esses países, como a terminologia correspondente é tendencialmente comum. E assim, não é de estranhar que se passasse a falar de «licenças» em Direito Intelectual, numa linguagem que de outro modo nos seria estranha.

Procurando o significado da licença administrativa portuguesa, vemos que ela é entendida como um ato administrativo, portanto um ato praticado por uma entidade que está integrada na Administração Pública. Por esse ato permite-se a uma pessoa estranha a essa Administração a prática de ato ou atividade relativamente proibidos. Distingue-se da mera autorização, também no sentido do Direito Administrativo, por nesta se pressupor que o requerente tem o direito ou a qualidade requerida para aquele exercício e a Administração apenas verifica que não ocorre contra-indicação fundada no interesse público.

Daqui resulta que a licença administrativa é um ato constitutivo de direitos e a autorização não. Não obstante, ainda que se...

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