Multimedia e direito de autor: alguns problemas

AutorMaria Victoria Rocha
Cargo del AutorUniversidade Católica do Porto (Portugal)
  1. Ao pretender abordar o tema «multimedia» (1), a primeira questáo que se nos depara é logo apreender com alguma precisáo o que seja. Nao é tarefa fácil. Esta «buzzword» (2), embora se tenha tornado moda, está longe de ter os seus contornos definidos. O termo inclui urna diversidade de significados e o desenvolvimento das tecnologías e da industria multimedia aínda nao tomou um rumo perfeitamente claro que nos permita chegar a urna noçáo precisa. O que cai sob o rótulo de «multimedia», afirma Bill Powell (3), «is complex and changing rapidly».

    Acresce que o termo é usado com frequéncia indevidamente, por vezes forma pr opositada, o que aumenta a dificuldade(4).

    Temos por objectivo analisar urna materia que se encontra ainda em plena evoluçáo, um terreno em larga medida desconhecido. Por isso, os objectivos do nosso estudo sao necessariamente modestos. Neste dominio em particular, como no mais geral contexto do advento da Sociedade da Informaçáo, nao é ainda sensato, nem muitas vezes possível, chegar a soluçóes definitivas. Os factos sobre que nos vamos deter estáo a acontecer diariamente, levantando urna serie de problemas jurIdicos novos e nao apenas no dominio do Direito de Autor. Fazendo nossa a afirmaçáo de Neil Wolff: «We're all in the same boat. Nobody has a wealth of experience in how to resolve these issues because there's never been a multimedia industry before» (5).

    O nosso objectivo será, portanto, apenas o de tentar enquadrar o fenómeno multimedia no Direito de Autor, colocando, em termos gerais, algumas questóes que nos parecem relevantes e tentando sugerir diversas soluçóes possíveis, atendendo aos interesses em jogo e tomando por base a doutrina especializada na materia.

  2. Para compreendermos algo da criaçáo multimedia e dos problemas que pode colocar ao mundo jurIdico, sao necessárias algumas palavras, aínda que breves, acerca das novas tecnologias informáticas que desafiam hoje o Direito de Autor. Referimonos, em concreto, a digitalizaçáo(6). A digitalizaçáo, isto é, a traduçáo de todos os sinais, todas as formas de informaçáo, sejam palavras, números, sons, imagens fixas ou em movimento, em bits, ou seja, num código binario, está no centro do actual fenómeno multimedia. Digitalizaçáo significa, em termos simples, que os computadores usam dados e programas consistindo em series de zeros e uns. Em resultado desta tecnología, quase tudo pode ser armazenado de forma digital: imagens, textos, sons, música, mesmo a informado necessária para reproduzir objectos tridimensionais. Uma vez postos em formato digital, para o computador estes varios elementos sao todos idénticos. Podem ser fundidos, transformados, manipulados, misturados, criando uma imensa variedade de obras novas, em que se incluem as obras multimedia(7).

    A ideia das formas multimedia nao é nova, no sentido de que nao é novo isto de juntar numa mesma criaçáo, imagens e sons(8). Wagner, por exemplo, concebeu as suas óperas como «Gesamtkünstwerke», integrando textos falados e cantados, música e aspectos visuais, para criar um efeito único. O memo se passa com os filmes, ou os jornais, enquanto sao, ou podem ser, montagens de diferentes formas simbólicas. Se os filmes incorporam imagens em movimento e sons; se as obras impressas podem incorporar fotografías, desenhos e texto, ou mesmo música (vejamse os livros de crianzas), entáo, num certo sentido, também sao multimedia. Mas quando hoje em dia se anuncia uma revoluçáo na forma de apresentar a informado trazida pelos novos produtos multimedia, certamente nao estaremos a falar de multimedia neste sentido.

    O que é novo e faz a radical diferenga é a integrado destas obras literarias, musicais, audiovisuais, fotográficas, plásticas, numa forma digital comum, que permite o seu armazenamento, manipulado e exibiçáo. E precisamente a digitalizaçáo que torna possível novas formas de media, novos produtos e servidos, novos mercados, revolucionando por completo a industria da comunicaçáo(9). E isto por varias razóes.

    Desde logo, a digitalizaçáo melhora a qualidade do servigo e aumenta a capacidade dos suportes. O que tem forte impacto no Direito de Autor, porquanto permite a obtençáo de copias rigorosamente idénticas e o armazenamento de um imenso número de obras, sem qualquer tipo de comparaçáo com o que permitiam os meios tradicionais analógicos (10).

    A digitalizaçáo conduz ainda a urna desmaterializaçáo que vem bara-lhar os conceitos jurIdicos em que se edificou o direito de Autor (11). Grabas a articulaçáo com o vector telemático e ao aperfeigoamento realizado pela técnica de «compressáo do sinal», permite a comercializaçáo de obras sem suporte material nos locáis de venda ou no domicilio. Se pensarmos ainda ñas aplicaçóes da digitalizaçáo no dominio da difusáo herteziana de programas radiofónicos (DAB) e na televisáo de alta definiçáo (TVHD), de certo que modificará profundamente as condigoes de exploraçáo das obras (12).

    A digitalizaçáo confunde a distinçáo tradicional entre servidos e produtos, fazendo convergir as industrias de media, em que se contam a imprensa escrita e a industria discográfica, que na fase prédigital criaram produtos físicos, vendidos ao público através de redes clássicas de distribuiçáo por grosso e a retalho, e as industrias de difusáo e as telecomunicagoes que produzem servigos, em sistema de monopolio ou oligopólio, controlando escassos cañáis de distribuiçáo (13). Nao quer dizer que o mercado dos suportes materiais desapareja por completo, mas o suporte deixa de ser o único meio de consumir livremente certo tipo de obras (14).

    A digitalizaçáo conduz a interactividade que, por sua vez, merece especial destaque, urna vez que é componente essencial do actual fenómeno multimedia. Ao permitir que os consumidores deixem de ser passivos, a interactividade traz um forte impacto ao nivel do Direito de Autor, quer do ponto de vista dogmático, quer prático. A interactividade mexe com conceitos essenciais como o de obra, contribuindo para a sua «dessacralizaçáo», ou o de autor, obrigando a repensar esta qualidade. Ao mesmo tempo modifica por completo os hábitos de consumo das obras (15).

    Há duas formas distintas de interactividade que a digitalizaçáo permite: pessoa-máquina e pessoa-pessoa. No primeiro modelo significa que é possível ao utilizador interagir, através de um sistema operativo de computador, com urna base de dados, construindo urna variedade de combinaçóes e caminhos a partir de informaçáo digitalizada préestabelecida.

    Temos o exemplo dos jogos de computador, das bases de dados digitais, do jornal digital.

    O segundo modelo é o do telefone. Vejase, em parte, o exemplo, da Internet(16).

    A digitalizaçáo conduz, portanto, a convergencia (17): convergencia de cañáis de distribuido («Information Superhighway»); convergencia de termináis e «software»; convergencia de formas de media; convergencia de modos de consumo; convergencia de mercados.

    Quanto a convergencia de cañáis de distribuido, a questáo hoje ainda em aberto é a de saber se a maioria dos bens e servidos de informaçáo será entregue em casa e nos locáis de trabalho através de cañáis de fibra óptica e, em caso afirmativo, quem os controlará e segundo que condiçóes. A batalha competitiva travase entre os operadores de telecomunicaçóes, as empresas de televisáo por cabo e as empresas de difusáo de todo o tipo, quer via terrestre, quer por satélite (18).

    Quanto a convergencia de «hardware» e «software», explica-se porque, por muita informaçáo digital que se transmita, ela nao se converte num bem ou servido comercializável sem um terminal que a descodifique e mostré, pelo que será necessário o estabelecimento de «standarts» e protocolos a este nivel(19). Alias, um dos factores que limita o investimento em produtos multimedia no momento presente é a ausencia de «standarts» (20), nao sendo ainda claro quem os estabelecerá (21)(22).

    A convergencia das formas de media leva-nos ao tema central do nosso estudo, i. e., ao aparecimento da criaçáo multimedia. Por vezes como forma de desenvolver e melhorar atributos de obras já existentes. Pense-se no jornal digital, ou na enciclopedia digital. Outras vezes com objectivos diversos, quer de entretenimento, quer de ensino, ou outros. De qualquer forma, um mercado com sucesso a este nivel envolverá a interacçáo entre os editores tradicionais de livros, jornais, revistas, e as industrias audio-visuais e informáticas (23).

    A convergencia dos modos de consumo significa a convergáncia entre «one-way» e interactivo, «on line» e «off line». Na fase prédigital todas as industrias de comunicaçáo sao «one-way», excepto as telecomunica-çóes, o que muda radicalmente com o advento da digitalizaçáo.

    Quanto a convergencia de mercados, a industria tradicional da comunicaçáo assenta em dois modelos de desenvolvimento: enquanto a imprensa, as industrias cinematográfica, discográfica e de difusáo, servem um mercado de consumo de massas, a industria das telecomunicaçóes serve primariamente o mercado dos negocios, sendo o mercado residencial marginal. Um dos maiores desafios dos que tentam criar um mundo multimedia será o choque entre estes dois mercados(24). Os produtos multimedia tanto se podem dirigir a um como outro. A título de exemplo, vajam-se as video-conferencias, ou o «home-shopping».

    Em conclusáo, potencialmente a digitalizaçáo modifica por completo, estrutura da industria da comunicado. Observa Nicholas Garnham(25), esta desenvolveu-se históricamente quase como um processo geológico, ou seja, por sucessivas carnadas: a imprensa, a industria cinematográfica, a industria discográfica, as telecomunicaçóes, a difusáo. Cada industria tem a sua estrutura distinta, os seus cañáis de distribuiçáo, os seus mercados, o seu sistema de regulamentaçáo. A digitalizaçáo quebra as barrei-ras técnicas entre estas industrias, ao apagar as distinçóes tradicionais entre produtos e servidos «one-way» e interactivo, ligado e nao ligado, («on line» e «off line»), revolucionando por completo o...

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