A marca de prestígio à luz da jurisprudência comunitária

AutorMaria Miguel Carvalho
Páginas357-372

Page 357

Introdução

A relevância e a atualidade do tema que nos cabe tratar nesta jornada são incontestáveis: a proteção ultramerceológica da marca de prestígio é «uma das pedras angulares do atual direito europeu de marcas» 1 - 2.

Page 358

Todavia, não obstante a sua consagração na Diretiva de Marcas [DM] 3, no

Regulamento sobre a Marca Comunitária [REGMC] 4 e mesmo da intervenção (frequente) do Tribunal de Justiça da União Europeia [TJUE] no que respeita, em especial, à interpretação das normas da Diretiva 5, a verdade é que se trata, ainda hoje, de um tema controverso.

Desde logo no que respeita ao próprio conceito de marca de prestígio e, em particular, à delimitação deste relativamente ao das marcas notoriamente conhecidas.

Com efeito, verifica-se uma tendência para o alargamento da tutela ultra-merceológica (isto é, para além do princípio da especialidade) às marcas notoriamente conhecidas que, na nossa opinião, não está devidamente fundamentada, já que a dualidade de problemas subjacentes a cada um dos referidos tipos de marca justificam não só uma terminologia específica, mas também um regime jurídico diferenciado 6.

Para que uma marca possa ser qualificada como marca de prestígio deve-lhe ser exigida uma maior notoriedade, ou um maior conhecimento, relativamente à marca notoriamente conhecida (que terá de ser «apenas» muito conhecida pelo público interessado), devendo ainda contar «ou com um elevado valor simbólico-evocativo junto do público consumidor (não obstante não seja de grande consumo) ou com um elevado grau de satisfação junto do grande público consumidor» 7.

No âmbito do direito europeu de marcas, apesar de a extensão da proteção ultramerceológica das marcas notórias não estar (ainda) expressamente consagrada, acaba por ser conseguida à custa da equiparação conceptual da marca de prestígio à marca notoriamente conhecida, precisamente, por via jurisprudencial. Refiro-me, em especial, ao Acórdão do TJUE, proferido no caso «General Motors», onde se afirmou que a marca de prestígio é uma marca muito conhecida pelo público interessado, sendo esta interpretação vinculativa para os legisladores e aplicadores da lei dos Estados-membros 8.

Page 359

O carácter controverso do tema que aqui vai ser tratado respeita ainda ao alcance da protecção conferida a estas marcas 9 -que, nalguns casos, a prática parece fazer ultrapassar o âmbito estritamente marcário- e que depende, em larga medida da interpretação e dos critérios (mais ou menos exigentes) para a actuação da referida tutela 10.

A atualidade da temática, como referi, é também indesmentível. Tanto mais quanto parece poder estar eminente uma reforma do direito europeu de marcas que, com grande probabilidade, incluirá alterações neste domínio e que referiremos, de forma muito sucinta, no final 11.

Face ao escasso tempo disponível, optei por abordar alguns aspectos que considero especialmente pertinentes e que têm sido objeto da jurisprudência comunitária.

I Os requisitos de protecção das marcas de prestígio

A Diretiva faz assentar a tutela deste tipo de marca em dois eixos.

Por um lado, consagra-a estabelecendo um impedimento relativo de registo e a correspondente causa de nulidade do registo de um sinal idêntico ou semelhante a uma marca de prestígio para assinalar produtos ou serviços que não sejam semelhantes àqueles para os quais a marca anterior foi registada nos artigos 4.º, núm. 3 e núm. 4, al.ª a). Por outro lado, no artigo 5.º, núm. 2, atribui ao titular da marca de prestígio o direito de proibir o uso que terceiros, sem o seu consentimento, façam de um sinal conflituante com aquela. Em ambos os casos faz depender a atuação desta tutela da verificação de que o uso da marca posterior procure, sem justo motivo, tirar partido indevido do carácter distintivo ou do prestígio da marca anterior ou possa prejudicá-los.

Porém, a proteção ultramerceológica (porque não confinada ao princípio da especialidade) que acabámos de referir não é necessariamente uniforme, já que a DM optou por consagrá-la de forma imperativa unicamente no que respeita às marcas comunitárias de prestígio, deixando à liberdade dos Estados-membros a sua transposição no que concerne às marcas de prestígio nacionais. Como seria de esperar, esta técnica-legislativa originou diferentes previsões nos ordenamentos jurídicos dos Estados-membros.

Assente que uma determinada marca possa ser qualificada como marca de prestígio 12, poderá então existir uma violação dos direitos atribuídos ao seu

Page 360

titular 13 - 14 quando o uso ou o (pedido de) registo por terceiro (não autorizado) de um sinal idêntico ou semelhante àquela integre, sem justo motivo, pelo menos, uma de quatro hipóteses 15: (i) tire partido do seu carácter distintivo; (ii) tire partido do seu prestígio; (iii) possa prejudicar o prestígio da marca ou (iv) possa prejudicar o seu carácter distintivo

Importa pois saber quando é que tal pode suceder.

1. O aproveitamento indevido do carácter distintivo e/ou do prestígio

Começamos por abordar o aproveitamento indevido do carácter distintivo e/ ou do prestígio da marca, já que em muitos casos aqueles andam associados 16.

Ora, a doutrina tem entendido que se está perante um aproveitamento do carácter distintivo de uma marca de prestígio, quando o uso e/ou o registo da marca posterior faça supor (erradamente) que os produtos ou serviços assinalados por uma e outra marca provêm da mesma entidade ou de entidades diversas mas negocialmente relacionadas (risco de confusão em sentido amplo).

Nos casos em que o uso e/ou o registo da marca posterior permita(m) «a «transferência da imagem» de qualidade e de acreditamento no mercado desta marca para aquela» 17 estar-se-á diante de um caso de aproveitamento do prestígio 18 da marca anterior.

Page 361

A jurisprudência comunitária tem feito uma leitura idêntica. Foi o que sucedeu, p.e., na sentença do agora Tribunal Geral no caso «SPA-FINDERS» 19 - 20, sendo que também o TJUE teve oportunidade de abordar esta questão, por exemplo, no acórdão de 18 de Junho de 2009, proferido a propósito do caso «L’Oréal/ Bellure» 21 e ainda no âmbito dos casos de relativos a «ADWORDS» 22.

Page 362

Page 363

Especificamente no que tange à jurisprudência referente a «ADWORDS», o TJUE considera que resulta «das características da selecção de sinais correspondentes a marcas que gozam de prestígio de outrem como palavras-chave na Internet que tal selecção pode, quando não exista um «justo motivo» na acepção dos artigos 5.°, núm. 2, da Directiva 89/104 e 9.°, núm. 1, alínea c), do Regulamento núm. 40/94, ser analisada como um uso através do qual o anunciante segue a rota traçada por uma marca que goza de prestígio a fim de beneficiar do seu poder de atracção, da sua reputação e do seu prestígio, e de explorar, sem nenhuma compensação financeira e sem ter de desenvolver os correspondentes esforços, o esforço comercial despendido pelo titular da marca para criar e manter a imagem dessa marca», acrescentando que «se assim for, deve considerar-se que o benefício realizado pelo terceiro é indevidamente obtido» 23.

Esta conclusão, segundo o mesmo Tribunal, pode «nomeadamente aplicar-se a casos em que anunciantes na Internet oferecem para venda, através da selecção de palavras-chave correspondentes a marcas de prestígio, produtos que são imitações dos produtos do titular das referidas marcas» 24. Mas, «em contrapartida, quando a publicidade exibida na Internet a partir de uma palavra-chave correspondente a uma marca que goza de prestígio propõe, sem oferecer uma simples imitação dos produtos ou dos serviços do titular dessa marca, sem causar uma diluição ou uma degradação e sem, de resto, violar as funções da referida marca, uma alternativa relativamente aos produtos ou aos serviços do titular da marca que goza de prestígio, deve concluir-se que tal uso se enquadra, em princípio, nos limites de uma concorrência sã e leal no sector dos produtos ou dos serviços em causa e tem portanto lugar por um «justo motivo» na acepção dos artigos 5.°, núm. 2, da Directiva 89/104 e 9.°, núm. 1, alínea c), do Regulamento núm. 40/94» 25.

2. O prejuízo causado, indevidamente, ao carácter distintivo e/ou ao prestígio

No que respeita à possibilidade de causar prejuízo ao carácter distintivo da marca, igualmente designado pelos termos «diluição», «diminuição» ou «ofus-

Page 364

camento», o TJUE -na senda da doutrina e da prática do Instituto de Harmonização do Mercado Interno [IHMI] 26- considerou, no acórdão proferido no caso «Intel» 27, que «esse prejuízo existe quando a aptidão dessa marca em identificar os produtos e os serviços para os quais foi registada e utilizada como sendo proveniente do titular da referida marca esteja enfraquecida, implicando o uso da marca posterior uma dispersão da identidade da marca anterior e da sua influência no espírito do público» e esclarecendo que «é o que acontece quando a marca anterior, que suscitava uma associação imediata com os produtos ou os serviços para os quais foi registada, já não esteja em situação de o fazer» 28 - 29.

O Acórdão referido reveste ainda interesse no que respeita à determinação deste requisito da proteção das marcas de prestígio porque se pronuncia sobre aspetos discutidos na doutrina como é o caso da exigência, ou não, da unicidade da marca de prestígio e sobre questões probatórias.

No que respeita ao primeiro, o Tribunal de Justiça refere que não é necessário que a marca anterior seja única para que se possa demonstrar a existência dessa violação ou de um risco...

Para continuar leyendo

Solicita tu prueba

VLEX utiliza cookies de inicio de sesión para aportarte una mejor experiencia de navegación. Si haces click en 'Aceptar' o continúas navegando por esta web consideramos que aceptas nuestra política de cookies. ACEPTAR