A incompletude da modernidade pela aporia da questão social.

AutorBruno J.R.Boaventura - Ivone Maria Ferreira da Silva
CargoMestrando em política social pela UFMT. - Doutora em Serviço Social pela PUC ? SP.
Páginas114-133

Page 116

I A promessa do Mundo moderno: a riqueza é para todos

O ato de revolver a terra para revoluir a semente nos deu a palavra revolução, palavra esta que entrou no léxico ocidental pelo significado de "qualquer grande transformação social e política suscetível de substituir as instituições e relações sociais anteriores e de iniciar novas relações de poder e de autoridade.1" Apesar de uma grande transformação não poder ser classificada como uma transformação qualquer, a citação do dicionário nos serve no propósito de reafirmar o conceito propriamente, diferenciando-o da idéia que no tempo se estabeleceu sobre revolução na modernidade. A Revolução se transformará então na própria concepção intentora da promessa da modernidade ocidental. Alain Touraine classificara a idéia da revolução como:

"The idea of revolution is at the heart of the Western representation of modernization. European experience, wich dominated the world stage for so long, drew its force, its violence, and its formidable capacity for expansion, from the central affirmation that modernity had to be produced solely by the force os reason, and that nothing should resist that universal inspiration wich would destroy all social and cultural tradition, all beliefs, privileges and communities."2A aurora da universalização da razão da nova era translucidava a tênue idade da noite, o mundo medieval é colocado a se por no amadurecer do fim. O tradicional sucumbiria ao progresso, estava anunciada a revolução: o novo tempo se ilumina, a humanidade conhece o alvorecer daquilo que chamará de modernidade, a nova etapa do contínuo processo global de europeização do mundo3. A dúvida que ainda permanece agonizando alguns é se realmente a modernidade é um projeto de globalização do tipo europeu? Anthony Giddens responde categoricamente tal pergunta se valendo de dois complexos organizacionais que fazem parte do rearranjo institucional da modernidade: o estado nação e a produção capitalista sistemática:

"Em termos de agrupamento institucional, dois complexos organizacionais distintos são de particular signifcação no desenvolvimento da modernidade: o estado nação e a produção capitalista sistemática. Ambos têm suas raízes em características específicas da história européia e têm poucos paralelos em períodos anteriores ou em outros cenários culturais. Se, em íntima conjunção, eles têm se precipitado através do mundo, é acima de tudo devido ao poder que geraram. Nenhuma outra forma social, mais tradicional, foi capaz de contestar este poder no que toca à manutenção de completa autonomia fora das correntes do desenvolvimento mundial. É a modernidade um projeto ocidental em

Page 117

termos dos modos de vida forjados por estas duas grandes agências transformadoras? A esta pergunta, a resposta imediata deve ser "sim"."4

A Revolução Industrial, a origem da produção capitalista sistemática, e a Revolução Francesa, a consolidação do estado nação, intentaram e conseguiram iniciar uma nova era na relação de poder estatal e autoridade política com uma promessa ao mundo, a da modernidade. Eric Hobsawm caracteriza essas Revoluções como os fundamentos do mundo moderno:

"Se a economia do mundo do século XIX foi formada principalmente sob a influência da revolução industrial britânica, sua política e ideologia foram formadas fundamentalmente pela Revolução Francesa. A Grã-Bretanha forneceu o modelo para as ferrovias e fábricas, o explosivo econômico que rompeu com as estruturas sócio-economicas tradicionais do mundo não europeu; mas foi a França que fez suas revoluções e a elas deu suas idéias, a ponto de bandeiras tricolores de um tipo ou de outro terem-se tornado o emblema de praticamente todas as nações emergentes, e a política européia (ou mesmo mundial) entre 1789 e 1971 foi em grande parte a luta a favor e contra os princípios de 1789, ou os ainda mais incendiários de 1793."5A promessa de que todos poderiam saber o que era riqueza através do progresso econômico e da nova ordem política rompe com os grilhões do mundo medievo. Maurice Dobb conceitua melhor do ninguém o processo da naturalização da promessa social da modernidade no que tange ao fundamento econômico do rompimento da tradição com o nascer do progresso como a lei da vida:

Em primeiro lugar, está o fato já familiar de que, no século XIX, o ritmo da modificação econômica, no que diz respeito à estrutura da indústria e das relações sociais, ao volume de produção e à extensão e variedade do comércio, mostrou-se inteiramente anormal, a julgar pelos padrões dos séculos anteriores: tão anormal a ponto de transformar radicalmente as idéias do homem sobre a sociedade de uma concepção mais ou menos estática de um mundo onde, de uma geração para outra, os homens estavam fadados a permanecer na posição que lhes fora conferida ao nascer, e onde o rompimento com a tradição era contrário à natureza, para uma concepção do progresso como a lei da vida e do aperfeiçoamento constante como estado normal de qualquer sociedade sadia.6

A base da sociedade deixaria de ser a engendrada pelo Sacro Império Romano-Germânico representado pelo Imperador e pelo Papa da Igreja Católica Apostólica Romana, que conjugados operavam a Cristandade Ocidental. O fundamento daquilo que estabelece a organização da sociedade deixaria de ser a cosmovisão teocrática medieval exsurgindo a necessidade de um novo baseamento, como Boaventura de Souza Santos colocara:

Page 118

"O colapso da cosmovisão teocrática medieval trouxe consigo a questão da autoria do mundo e o indivíduo constituiu a primeira resposta. O humanismo renascentista é a primeira afloração paradigmática da individualidade como subjetividade. Trata-se de um paradigma emergente onde se cruzam tensionalmente múltiplas linhas de construção da subjetividade moderna. Duas dessas tensões merecem um relevo especial. A primeira ocorre entre a subjetividade individual e a subjetividade coletiva. (...) Para o que aqui nos interessa, cabe lembrar que o posicionamento específico da teoria política liberal perante as duas tensões acima referidas representa a proposta hegemônica da resolução da questão da identidade moderna. Na tensão entre subjetividade individual e subjetividade coletiva, a prioridade é dada à subjetividade individual; na tensão entre subjetividade contextual e subjetividade abstrata, a prioridade é dada à subjetividade abstrata. Tratam-se de propostas hegemônicas, mas não únicas nem em todo o caso estáveis. O triunfo da subjetividade individual propulsionado pelo princípio do mercado e da propriedade individual, que se afirma de Locke a Adam Smith, acarreta consigo, pelas antinomias próprias do princípio do mercado, a exigência de um super-sujeito que regule e autorize a autoria social dos indivíduos. Esse sujeito monumental é o Estado liberal.7"

A relação central da vida deixou de ser teocrática para ser antropocêntrica. O homem conquistou a liberdade desejada do mundo medieval projetando-se como um indivíduo capaz de projetar verdades, a cada indivíduo cabe possuir o seu próprio imperativo categórico kantiano. O paraíso não será mais a força motriz da vida humana no ocidente, mas sim a riqueza econômica e o poder político.

O dois complexos organizacionais que fazem parte do rearranjo institucional da modernidade, o estado nação e a produção capitalista sistemática, são faces de uma mesma moeda. Uma das faces, a vertente política, é a soberania do Estado Liberal de Direito, símbolo da Revolução Francesa. A outra face, a vertente econômica, é simbolizada pela sociedade de mercado mundial da Revolução Industrial. Faces de uma mesma moeda alcunhada de burguesia, caracterizadas como a do capitalismo e a do liberalismo8. O que temos será então a conjugação do capitalismo do livre mercado com o individualismo do liberalismo, no modelo de modernização ocidentalizante definido por um tipo de ator dirigente, o capitalista9.

II O moderno sonho político: liberdade, igualdade e fraternidade

O marco político da modernidade é a queda da bastilha, batalha que afirma no tempo os ideais da Revolução Francesa. Ideais que são projetados na ópera Eu sonhei um sonho baseada na obra prima de Vitor Hugo, os Miseráveis. A modernidade é então ressoada como o sonho dos sonhos dos miseráveis

Page 119

("Sonhei um sonho."), em que o tempo histórico da luta de classe já havia acabado com a superação da questão social ("Com o tempo já acabado."), em que a esperança foi ao extremo pela confiança na nova ordem política democrática ("Quando a esperança era alta".) e principalmente que viver valeria plenamente a pena pelo término da exploração sem limites ("E viver valeria a pena ...").

A comuna de Paris é o marco histórico que resgata a idéia grega da legitimidade democrática da ordem política, e a alimenta-se da idéia medieval de liberdade: o direito do vassalo à autonomia. Antagoniza-se com o extermínio de índios nos novos mundos, a escravidão dos negros e a expropriação dos pequenos produtores. Constrói, no entanto uma teoria política que pretendendo libertar a humanidade dos déspotas do absolutismo, consagra a filosofia do direito natural moderno da liberdade, conforme Florence Gauthier10.

O postulado das ruas de igualdade ganhou a base que tanto necessitava. A Lei é formalmente considerada como uma vontade de todos, não mais de poucos, com o advento da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (França, 26 de agosto de 1789):

Artigo 6º - A Lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de participar, pessoalmente ou através de seus representantes, da sua elaboração. Ela deve ser igual para todos, seja protegendo, seja punindo. Todos os cidadãos, sendo iguais a seus olhos...

Para continuar leyendo

Solicita tu prueba

VLEX utiliza cookies de inicio de sesión para aportarte una mejor experiencia de navegación. Si haces click en 'Aceptar' o continúas navegando por esta web consideramos que aceptas nuestra política de cookies. ACEPTAR