Interculturalidade e Fontes do Direito - A ética da racionalidade do outro como princípio e critério objetivo na análise da interculturalidade e sua relação quanto à legitimação das fontes do direito

AutorDe Souza, Artur César
Cargo del AutorJuiz Federal brasileiro do Tribunal Regional Federal da 4ª Região
Páginas253-270

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Ver nota 1

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A palavra fontes, em sua concepção original, é derivada do latim fons (nascente, manancial), e, segundo DE PLÁCIDO E SILVA «entende-se, em lato sentido, o local em que nascem ou brotam as águas»2.

Fontes, segundo seu próprio sentido etimológico, origem, procedência, «é empregado para indicar tudo de onde procede alguma coisa, onde ela se funda e tira razão de ser, ou todo fato que dá nascimento a outro»3.

A expressão «fontes do direito» apresenta certa multivocidade, como nos diz Luiz Regis Prado e Munir Karam, convertendo-se aos

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olhos de muitos estudiosos em equivocidade, e não raros propõem substituí-la por outras. Kelsen não vacila em suscitar a imprestabili-dade do termo «fontes do direito» em decorrência de sua pluralidade de significações. No entanto, nas línguas conhecidas do ocidente, emprega-se esse termo, utilizando-se nos idiomas mais importantes do mundo nas seguintes versões «sources du droit, sources of law, Rechtsquellen, fonti del diritto, fuentes del derecho»4.

Planiol nos diz que a expressão fontes de direito pode ser tomada em dois sentidos diferentes. Quando se trata de direito antigo, referese aos documentos em que podemos estudar uma legislação extinta ou abolida, o que é importante para os historiadores (ex. Código de Manou, as Leis Cretenses, a Lei das Doze Tábuas e o Corpus Juris Civilis). No segundo sentido, chamado législation vivante, que é o direito em vigor, significando as diferentes maneiras pelas quais as regras jurídicas são estabelecidas; ou, como diz Tito Fulgêncio, são os mananciais donde aparece exteriorizado o princípio jurídico; ou ainda, como diz Espínola, são as formas concretas que o direito objetivo assume num Estado e num tempo determinado5.

Sustenta-se que há dois tipos de ordenamento jurídico bem definidos no que concerne à origem do direito, ou seja, o da tradição romanística (noções latinas e germânicas) e o da tradição anglo-americana (common law). A primeira enfatiza o primado do processo legislativo, acentuando-se após a Revolução Francesa, «quando a lei passou a ser considerada a única expressão autêntica da Nação, da vontade geral, tal como verificamos na obra de Jean-Jacques Rousseau, Du Contrat Social». Ao lado da tradição romanística, há o direito consagrado pelos povos anglo-saxões, «nos quais o Direito se revela muito mais pelos usos e costumes e pela jurisdição do que pelo trabalho abstrato e genérico dos parlamentos. Trata-se do Direito misto, costumeiro e jurisprudencial»6.

Miguel Reale nos brindou com um amplo apanhado geral pela história do direito, fazendo uma restrospectiva das fontes através do

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tempo, o que, segundo ele, só é possível à luz da Antropologia cultural ou Etnologia (ciência da cultura material e espiritual dos chamados povos «selvagens» ou «primitivos») e da História. Demonstra-nos o renomado filosofo brasileiro a importância do direito costumeiro nas sociedades primitivas, bem como que a jurisdição, a lei e a doutrina só apareceram em um momento já bastante evoluído da cultura jurídica como se pode facilmente ver na história do Direito Romano e do Direito Contemporâneo do Estado Burguês7.

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Contudo, essa análise histórica das fontes do direito, seja na tradição romana, seja no common law, permite-nos observar que a legi-

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timação das fontes do direito seria proveniente de um certo monismo jurídico, no qual prevalece uma cultura jurídica unitária que reproduziu idealizações normativas reveladoras de certo tipo de racionalização formal, sem reconhecimento de alternativas outras também válidas e legítimas, ou seja, sem o reconhecimento de uma racionalização material quanto às fontes do direito. Assim, o Direito Estatal, legislado diretamente por um poder unitário e soberano, quanto o Direito dos Juízes, resultante de precedentes, irão gerar as bases racionais de uma tradição jurídica lógico-formalista. Tanto o racionalismo filosófico quanto o iluminismo político favoreceram os horizontes específicos do Estado Liberal burguês-capitalista que, como fonte única de validade, foi capaz de exprimir em normas jurídicas as idéias, os objetivos, as necessidades e as relações sociais de segmentos dominantes da sociedade. Por isso, das diferentes expressões instrumentais de produção normativa (leis, precedentes, jurisprudência, doutrina etc) que têm revelado e sustentado o princípio do monismo jurídico na modernidade burguês-capitalista, doravante, há de se privilegiar e se ater tão-somente à mais significativa formalização normativa da organização política moderna: O Direito Estatal burguês capitalista, assentado nos princípios da estatalidade, unicidade, positivação e racionalização8.

Contudo, mesmo que se admita num primeiro momento a hegemonia do projeto jurídico unitário, especialmente do Direito Estatal, esta hegemonia não impede a existência concomitante do pluralismo jurídico de uma tradição bem mais antiga de formulações jurídicas comunitárias, com a manutenção de ordenamentos jurídicos independentes do Estado e de seus órgãos institucionais (Parlamento e Judiciário), dentre os quais merecem destaques: o Direito Eclesiástico e o Direito Internacional9.

Mas essa hegemonia do projeto jurídico unitário tende a perder força, principalmente a partir da percepção da crise e esgotamento do modelo jurídico liberal-individualista, que não oferece resposta satisfatórias (eficazes) aos reclamos político-sociais de segurança e certeza no atual estágio de evolução das sociedades complexas e

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conflitivas de massa, necessitando-se buscar uma nova perspectiva para as fontes do direito, perspectiva essa que leve em consideração o multiculturalismo co-existencial nas sociedades contemporâneas e globalizadas10.

Estamos diante de uma crise de legitimação que impõe a obrigatoriedade de se propor a discussão sobre a «crise de paradigmas», uma vez que não se pode mais desconsiderar a incapacidade das ciências humanas de tratar eficazmente a totalidade da situação do ser humano em face das distorções das formas de «verdade» tradicionais e dos obstáculos epistemológicos ao saber vigente11.

Conforme ensina José Eduardo Faria: «a idéia de crise aparece quando as racionalidades parciais não mais se articulam umas com as outras, gerando graves disfunções estruturais para a consecução do equilíbrio social. (...) a crise representa a Sociedade (...) invadida por contradições. Assim considerada, a crise é uma noção que serve para opor uma ordem ideal a uma desordem real, na qual a ordem jurídica é contrariada por acontecimentos para os quais ela não sabe dar respostas eficazes»12.

A crise do direito como paradigma da dogmática jurídica estatal está diretamente relacionada com a crise dos fundamentos e dos paradigmas que norteiam a modernidade.

Além do mais, a análise histórica e etnológica do direito irá nos mostrar que, tenha o direito por fonte o costume, o primado da legislação ou os precedentes jurisprudenciais, o certo é que o fundamento de validade do direito encontra-se sobrecarregado de interesses políticos, econômicos, sociais, condicionado por ideologias, sitiado por valores13. Há, assim, um constante pluralismo ideológico na perspectiva histórica das fontes do direito.

E esse pluralismo ideológico atravessa diferentes momentos da histórica ocidental, mundos medievais, moderno e contemporâneo,

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inserindo-se numa rica e complexa multiplicidade de interpretações, possibilitando enfoques marcados pela existência de mais de uma realidade, de amplas formas de ação e da diversidade de campos sociais com particularidade própria

14 .

Essa complexa multiplicidade torna-se mais evidente diante de um mundo globalizado, de fácil movimento migratório populacional, instituidor de comunidades comuns regionais ou continentais, quando não de multiculturas inseridas no interior de um mesmo Estado ou de uma mesma Comunidade de Estados.

A complexidade cultural de interesses políticos, sociais, econômicos, étnicos, raciais, condicionada por ideologias e sitiada por valores já não pode ser analisada e resolvida sob a perspectiva jurídica restritiva e fechada de um determinado Estado ou Nação, nem por um positivismo jurídico dogmático que permanece preso à legalidade formal escrita e ao monopólio estatal de produção normativa, afastando-se das práticas sociais, desconsiderando a pluralidade de novos conflitos sociais, étnicos, culturais.

Evidentemente que, tratar a questão do pluralismo jurídico supõe necessariamente questionar os fundamentos inapeláveis do positivista, tão freqüentemente dominante em nossas Universidades de Direito, no sentido de que o fundamento de validade do direito encontra-se restrito ao pertencer a norma a um determinado ordenamento jurídico estatal, pouco importando a complexidade multicultural que se percebe cada vez mais nas relações sociais15.

Na verdade, o pluralismo jurídico compreende muitas tendências com origens diferenciadas e caracterizações singulares, «envolvendo o conjunto de fenômenos autônomos e elementos heterogêneos que não se reduzem entre si»16.

Não é fácil consignar uma certa uniformidade de princípios essenciais, principalmente pela diversidade de modelos (fontes do di-

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reito) e de autores, «aglutinando em sua defesa desde matizes conservadores, corporativistas, institucionalistas, socialistas, etc.»17.

Contudo, conforme afirma Antonio Carlos Wolkmer, «esta situação de complexidade não impossibilita admitir que o principal núcleo para o qual converge o pluralismo jurídico é a de negação de que o Estado seja o centro único do poder político e a fonte exclusiva de toda produção do Direito»18.

Um exemplo marcante no ordenamento jurídico brasileiro no que concerne à questão do pluralismo jurídico e a negação de que o Estado seja o centro único do poder político e a fonte exclusiva da produção do Direito, podemos verificar na análise e interpretação do artigo 121 do Código Penal brasileiro (crime de...

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