O direito de patentes, o sistema regulatório de aprovação e o acesso aos medicamentos genéricos

AutorJoão Paulo F. Remédio Marques
Páginas455-496
O DIREITO DE PATENTES, O SISTEMA
REGULATÓRIO DE APROVAÇÃO E O ACESSO
AOS MEDICAMENTOS GENÉRICOS
JOÃO PAULO F. R EMÉDIO MARQUES*
RESUMEN
El presente estudio analiza con detalle los obstáculos fácticos y jurídicos para la
efectiva comercialización de los medicamentos genéricos, incluso después de la cadu-
cidad de las patentes o de los certificado complementario de protección correspondien-
tes a los medicamentos innovadores o de referencia. Estos obstáculos se deben a las
innumerables estrategias usadas por las empresas de fármacos de referencia, en par-
ticular en su forma de intervenir en los procedimientos para autorizar la comercializa-
ción de genéricos por parte de las autoridades sanitarias nacionales, en el reembolso o
en los procedimientos de autorización de precios.
Palabras clave: medicamentos; autorización de introducción en el mercado,
patentes, certificados complementarios de protección de los medicamentos, medica-
mentos genéricos; autorización de precios de los medicamentos, protección de datos,
derechos exclusivos de comercialización, Portugal, Unión Europea.
ABSTRACT
This study offers a detailed analyses of the legal and material obstacles set on the
approval of generic medicines prior to or immediately after the patent term or otherwise
the supplementary protection certificate term related to innovator or original medicines.
These hurdles are due as to how original drugs pharmaceutical enterprises intervenes
either in the marketing authorization procedures for generic medicines obtained from
national health authorities, in the reimbursement or in the price authorization procedures.
Keywords: pharmaceuticals; marketing authorization; patents; supplementary pro-
tection certificates; generic medicinal products; medicines prices authorization; data
protection; exclusive marketing rights, Portugal, European Union.
SUMÁRIO: I. INTRODUÇÃO. APRESENTAÇÃO E RELEVO DO TEMA.—II. OS OBSTÁCULOS
NO ACESSO AOS MEDICAMENTOS GENÉRICOS.—III. A IMPORTÂNCIA MERCEOLÓGI-
*Prof. Dr. Iur. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Membro, inter
alia, da Associação Portuguesa de Direito Intelectual (Lisboa), do Instituto de Direito das Empresas e
do Trabalho (Coimbra), e do Centro de Direito Biomédico (Coimbra). Correio electrónico: reme-
dio@fd.uc.pt.
ADI
29 (2008-2009): 455-496
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CA DO SECTOR FARMACÊUTICO.—IV. OS CONSTRANGIMENTOS ADMINISTRATIVOS
REGULATÓRIOS: AUTORIZAÇÕES DE INTRODUÇÃO NO MERCADO (AIM) E PROCEDI-
MENTOS DE FIXAÇÃO DO PREÇO MÁXIMO DE VENDA AO PÚBLICO DOS MEDICA-
MENTOS.—V. AS EMPRESAS FARMACÊUTICAS DE GENÉRICOS VERSUS AS EMPRE-
SAS FARMACÊUTICAS DE MEDICAMENTOS DE REFERÊNCIA FACE ÀS RESPECTIVAS
CONDIÇÕES DE MERCADO E AO SISTEMA REGULATÓRIO PÚBLICO.—VI. O ACRÉSCI-
MO DE PROTECÇÃO DOS TITULARES DE PATENTES FARMACÊUTICAS RESPEITAN-
TES A MEDICAMENTOS DE REFERÊNCIA: O CERTIFICADO COMPLEMENTAR DE PRO-
TECÇÃO, O PRAZO DE PROTECÇÃO DOS DADOS E OS DIREITOS EXCLUSIVOS DE
COMERCIALIZAÇÃO.—1. O CERTIFICADO COMPLEMENTAR DE PROTECÇÃO.—2. O PRAZO DE PRO-
TECÇÃO DOS DADOS.—3. OS DIREITOS EXCLUSIVOS DE COMERCIALIZAÇÃO.—VII. A INTERFERÊNCIA
CONDICIONADORA DOS DIREITOS DE PATENTE DO MEDICAMENTO DE REFERÊNCIA
NOS PROCEDIMENTOS DE APROVAÇÃO DE MEDICAMENTOS GENÉRICOS. AS TESES
EM CONFRONTO E O PROBLEMA DA INTERFERÊNCIA OU LIGAÇÃO (LINKAGE) DA
PROPRIEDADE INDUSTRIAL NESTES PROCEDIMENTOS DE APROVAÇÃO.—1. ATESE DA
PROTECÇÃO MÁXIMA DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL.—2. A TESE INTERMÉDIA; AS AUTORIZAÇÕES ADMINISTRA-
TIVAS A TERMO OU SOB CONDIÇÃO.—3. A TESE DA INDEPENDÊNCIA E AUTONOMIA DOS PROCEDIMENTOS DE
APROVAÇÃO RELATIVAMENTE ÀS PATENTES OU CERTIFICADOS COMPLEMENTARES DOS MEDICAMENTOS DE
REFERÊNCIA.—4. A POSIÇÃO ADOPTADA: A NÃO INTERFERÊNCIA DOS DIREITOS DE PATENTE E CERTIFICADOS
COMPLEMENTARES DE PROTECÇÃO NOS PROCEDIMENTOS DE AIM E DE FIXAÇÃO DOS PREÇO DOS MEDICAMENTOS
GENÉRICOS—VIII. CONCLUSÕES.
I. INTRODUÇÃO. APRESENTAÇÃO E RELEVO DO TEMA
É enorme a competição entre empresas farmacêuticas de medica-
mentos de referência 1, ou medicamentos inovadores protegidos por
direitos de propriedade industrial, e as empresas de medicamentos
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1Os medicamentos de referência ou medicamentos inovadores (conhecidos nos EEUU como
«new drugs») são todos os medicamentos cuja introdução no mercado foi autorizada pelas autoridades
sanitárias competentes com base em documentação completa, incluindo os resultados de ensaios físi-
co-químicos, biológicos, micro-biológicos, toxicológicos, farmacológicos, pré-clínicos e clínicos
(art. 3.º/1, alínea ii), do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto, que, em Portugal, aprovou o Esta-
tuto do Medicamento), ao abrigo das legislação comunitária aplicável. Faz-se mister, por conseguinte,
fornecer o dossiê completo às autoridades sanitárias competentes, para fins de aprovação do medica-
mento. Já, neste sentido a decisão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, no proc. C-
368/96, de 3 de dezembro de 1998, in Colectânea de Jurisprudência do Tribunal de Justiça das
Comunidades Europeias, 1998, I, págs. 1967 ss. Mais: nos casos de medicamentos não abrangidos
pelo âmbito de aplicação do Anexo do Regulamento (CE) n.º 2309/93, do Conselho, de 22 de julho de
1993, ou do actual Regulamento (CE) n.º 726/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de
março de 2004 (sobre o procedimento centralizado de aprovação de medicamentos, junto da Agência
Europeia do Medicamento), deve exigir-se, para o efeito do preenchimento do conceito de medica-
mento de referência (e de emissão de autorização para o correspondente medicamento genérico), que,
quando aquele medicamento tenha sido introduzido no mercado ao abrigo de um procedimento nacio-
nal anterior à adesão desse Estado-membro à Comunidade, tenha ocorrido uma actualização do pro-
cesso relativo ao medicamento em causa, após a adesão desse Estado-membro à Comunidade Euro-
peia, nos termos da Directiva n.º 65/65/CEE, do Conselho, de 26 de janeiro de 1965, relativa à
aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas, respeitantes às especiali-
dades farmacêuticas (in Jornal Oficial, n.º 126, de 9 de fevereiro de 1965, págs. 18 ss.), ao abrigo da
Directiva n.º 75/319/CEE, do Conselho, de 20 de maio de 1975, sobre o mesmo tema (in Jornal Ofi-
cial, n.º L 147, págs. 13 ss., na redacção da Directiva 2000/38/CE, da Comissão, de 5 de Junho de
2000, in Jornal Oficial, n.º L 139, pág. 28), ou nos termos dos artigos 6.º/1 e 8.º da actual Directiva
n.º 2001/83/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de novembro de 2001 (in Jornal Oficial,
n.º L 311, págs. 67 ss.), alterada pela Directiva n.º 2004/27/CE, de 31 de março de 2004 (in Jornal Ofi-
cial, n.º L 136, págs. 34 ss.). Se esse dossiê técnico relativo ao medicamento não tiver sido actualiza-
do, nos termos atrás mencionados, penso que não deve ser concedida a autorização de introdução no
mercado (AIM) do genérico desse medicamento. Cfr., em sentido próximo, a opinião do Advogado-
Geral (JÁN MAZÁK), de 26 de março de 2009, no âmbito do pedido de decisão prejudicial pendente no
processo C-527/07, proveniente do Hight Court of Justice da Inglaterra e do País de Gales.
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genéricos e de medicamentos essencialmente similares. Nos EEUU, o
mercado dos genéricos gera um volume de vendas de, aproximadamen-
te, 60 biliões de dólares deste país, sendo que estes medicamentos são
atingidos por cerca de 70% do total da prescrição médica 2.
As empresas de medicamentos de referência usam todo um acervo
de práticas (contratuais e extracontratuais), a fim de manter a sua
hegemonia no mercado após a extinção dos direitos de patente ou dos
certificados complementares de protecção respeitantes aos medica-
mentos inovadores. Metade dos medicamentos de referência sofre a
concorrência dos medicamentos genéricos no primeiro ano subse-
quente à extinção de todos aqueles direitos de exclusivo. O que, de
harmonia com os dados recolhidos entre 2000 e o final de 2007,
representa, na União Europeia, cerca de 74% das vendas brutas desses
medicamentos de referência no ano em que ocorreu a extinção de tais
exclusivos.
Esta apetência merceológica é justificada: no 1.º ano de comercia-
lização, os medicamentos genéricos são vendidos, por regra, a um
preço inferior a 25% do preço médio de venda dos medicamentos de
referência correspondentes. Dois anos após a extinção daqueles direi-
tos de propriedade industrial e demais exclusivos, o preço dos medica-
mentos genéricos é 40% inferior ao preço médio dos medicamentos de
referência correspondentes. O sistema administrativo regulatório de
fixação do preço máximo de venda ao público destes medicamentos
genéricos explica, como veremos (infra, § 4.), esta diminuição do
preço final de venda. Estes números influenciam dramaticamente as
despesas suportadas pelos sistemas nacionais de saúde (de matriz
pública, privada ou mista): no 1.º ano de entrada dos medicamentos
genéricos no mercado, os serviços estaduais de saúde dos Estados-
membros da União Europeia têm uma poupança de, em média, 20%.
Dois anos após o início da comercialização dos genéricos, a redução
das despesas cifra-se ao derredor dos 25%. Estima-se que, com base
apenas numa amostra de medicamentos em 17 Estados-membros, o
sacrifício económico dos sistemas nacionais de saúde teria um acrésci-
mo de 14 biliões de Euros se a comercialização dos medicamentos
genéricos correspondentes de referência não fosse autorizada. Mais: se
essa introdução no mercado fosse realizada imediatamente após a
extinção dos direitos de propriedade industrial dos medicamentos de
ADI 29 (2008-2009), 455-496 • ISSN: 1139-3289 457
Vê-se, destarte, que foi adoptado um conceito técnico-científico (de medicamento de referência
ou medicamento inovador) para fins administrativos, no âmbito da prossecução de tarefas públicas
ligadas à segurança, à eficácia e à qualidade dos medicamentos para uso humano; um conceito desli-
gado de quaisquer considerações atinentes à validade, à existência ou à eficácia de direitos de patente
ou certificados complementares de protecção que sobre tais medicamentos possam ter sido constituí-
dos. Cfr., infra, nota 42, sobre os conceitos de medicamento genérico e medicamento essencialmente
similar, incluindo os denominados biogenéricos.
2J. HOLLINGSHEAD/R. JACOBY, «Avoiding no man’s land – Potential unintended consequences of follow-
on biologics», Deloitte, March 2009, pág. 7, in http://www.deloitte.com/dtt/cda/doc/content//us_Ishc_avoid-
ing%20no%20man%27s%20land_FOB_033009%281%29.pdf.
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