O conteúdo e o alcance da excepção «Roche-Bolar» na União Europeia, em especial no que respeita à posição dos fornecedores da substância activa dos medicamentos genéricos protegida por patente ou certificado complementar de proteção - um novo desafio ao Tribunal de Justiça

AutorJoão Paulo F. Remédio Marques
Páginas457-474

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I Introdução

O licere do direito de patente não abrange, como todos sabem, um conjunto de actos qualificáveis como actos livres 1. Estes últimos correspondem, hoc sensu e maioritariamente, em todos os ordenamentos jurídicos, aos actos realizados sobre o objecto da patente para uso privado ou não comercial, e aos actos efectuados (sobre esse mesmo objecto) para fins de ensaio ou experimentais 2. A con-

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figuração legislativa da utilização (livre) da invenção patenteada (ou protegida por certificado complementar de proteção - CCP) para fins de ensaio ou experimentais tem sido subdividida, por alguns legisladores dos Estados-Membros da União Europeia, numa outra específica utilização com escopo, uno actu, experimental e regulatório, objecto desta anotação jurisprudencial: as experiências e os ensaios com um fim precípuo, qual seja o da preparação dos procedimentos administrativos indispensáveis à aprovação de medicamentos genéricos durante a vigência da patente (ou CCP) relativa ao medicamento de referência ou da patente (ou CCP) relativa ao processo da sua obtenção ou ao específico uso terapêutico reivindicado da substância activa (ou associação de substâncias activas). Isto porque, como é sabido, a patente farmacêutica de processo confere o direito exclusivo da exploração económica do produto directamente obtido pelo processo químico (ou biotecnológico) patenteado; outrossim, a patente do específico uso terapêutico da substância química (ou da matéria biológica) já compreendidas no estado da técnica apenas confere ao titular o uso exclusivo de exploração económica do medicamento (onde tais substâncias activas estão contidas) autorizado pela autoridade sanitária competente e preparado para ser utilizado no quadro dessa específica utilização terapêutica (v. Gr., provido do específico folheto informativo e de instruções para o específico uso terapêutico reivindicado).

Na verdade, é vasta a tipologia dos ensaios e experiências que é possível hipotizar relativamente ao objecto da invenção. A experimentação pode visar: a identificação e o desenvolvimento de outras substâncias a partir da substância patenteada; a preparação da futura exploração do invento, tão logo que se verificar a caducidade do direito de patente (ou CCP); a comparação da veracidade e da suficiência da descrição apresentada pelo titular da patente; a avaliação das potencialidades da invenção patenteada, com vista a adaptá-la às necessidades comerciais de terceiros; a obtenção de informações necessárias acerca da substância patenteada (ou protegida pelo patente do processo da sua obtenção), tendo em vista instruir procedimentos administrativos de autorização (v. Gr., para colocação no mercado, para cultivo, para utilização confinada, etc.); a demonstração, com fins promocionais, das qualidades do produto patenteado a potenciais clientes; a identificação de outras propriedades, funções ou aplicações da invenção patenteada, incluindo a realização de ensaios clínicos; a identificação de questões ou problemas desconhecidas por parte de quem realiza as experiências 3.

Esta última utilização livre é comumente conhecida por excepção ou limitação «Bolar-Roche», assim denominada na sequência do caso Roche Products Inc v. Bolar Pharmaceuticals Col Inc 4.

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  1. As dificuldades na determinação do alcance da excepção «roche-bolar» na União Europeia

    Todavia, subsistem enormes desconformidades nos ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros quanto ao sentido e alcance desta utilização livre para fins aprovação administrativa de medicamentos - ou, como prevê o Código da Propriedade Industrial português, de quaisquer outros produtos cuja introdução no mercado está dependente da emissão de uma ou várias autorizações administrativas.

    Desde logo, subsistem dúvidas e controvérsias: (a) Quanto ao âmbito objectivo, a extensão desta utilização livre abrange todos os produtos cuja colocação no mercado está condicionada pela emissão de autorizações administrativas, que não somente os medicamentos genéricos 5; (b) Quanto ao âmbito territorial, se deverão achar-se isentas de consentimento do titular da patente as experiências e ensaios efectuadas num Estado-Membro, mesmo quando a autorização administrativa seja peticionada e concedida por um outro Estado-Membro (ou Estado integrante do Espaço Económico Europeu) ou, mais do que isso, por uma qualquer outra autoridade administrativa competente de um Estado nãomembro da União Europeia; (c) Quanto ao âmbito material, o alcance desta utilização livre permite, ou não, a importação, o fabrico ou utilização de amostras da substância activa (ou associação de substâncias activas) 6; (d) Quanto ao âmbito subjectivo, saber se o beneficiário desta utilização livre somente pode ser a pessoa ou entidade peticionante da autorização administrativa de introdução (do produto: scilicet, do medicamento) no mercado ou, se pelo contrário, o titular da patente (ou CCP) está impedido de se opor às experiências e ensaios efectuados por quem não irá ser o beneficiário das autorizações administrativas 7.

  2. A importância do tema face à patente europeia com efeito unitário e ao acordo relativo ao tribunal unificado de patentes

    A indeterminação judicativa sobre o alcance desta específica utilização do direito de patente (ou CCP) gera uma inadmissível incerteza económica sobre o an, o locus o momento em relação aos quais são efectuadas as opções de investimento por parte das empresas que operam no sector farmacêutico no espaço da União Europeia. É, por exemplo, legítimo e ponderoso que os ensaios farmacológicos e toxicológicos sejam realizados no mesmo país da realização

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    dos ensaios pré-clínicos e clínicos respeitantes ao medicamento genérico (ou de referência) perante cuja administração competente seja pedida e obtida autorização de introdução no mercado (AIM), excepto, evidentemente, quando o requerente da AIM seja obrigado a observar o mecanismo central de AIM, junto da Agência Europeia do Medicamento, por força da natureza do medicamento para que se pretende a AIM (maxime, medicamento biológico, medicamento biossimilar). É, inclusivamente, adequado verificar-se a coincidência entre o

    Estado onde são realizados os mencionados ensaios e o local onde têm lugar as actividades de avaliação da tecnologia médica e de farmacovigilância. Esta situação post factum finitum (id est, susceptível de ter lugar após a emissão da AIM do medicamento genérico) é, porém, de duvidosa inclusão na utilização livre que estou a analisar.

    Doutra sorte, é imperioso um esforço de harmonização ou de estabelecimento de bitolas normativas mínimas quanto ao alcance desta utilização livre nos Estados-Membros da União Europeia 8. Ora, quanto maior for a diversidade de soluções jurídicas consagradas nos Estados-Membros participantes do mecanismo de cooperação reforçada no que toca à implementação desta utilização livre do direito de patente, maior será, igualmente, a incerteza e a assimetria de planeamento empresarial estratégico para a realização de ensaios pré-clínicos e clínicos, maxime, se o local de estabelecimento do requerente estiver situado em mais do que um Estado-Membro ou estiver localizado num país terceiro 9. Não obstante as disposições deste Regulamento estejam sujeita a um mesmo direito material aplicável, na realidade haverá patentes europeias com efeito unitário sujeitas, não raro, a diferentes direitos materiais aplicáveis. Vale dizer: quando o Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes for ratificado pelo número mínimo de Estados-Membros, este converte-se em direito nacional 10. Donde, quando o artigo 7.º (e, também, o artigo 5.º) do Regulamento (CE) n.º 1257/2012 trata esta patente europeia como patente nacional do Estado-Membro participante do mecanismo de cooperação reforçada onde o requerente da patente tem o seu domicílio, isso significa que a referida remissão engloba, igualmente, as disposições substantivas do Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes, incluindo as respeitantes à utilização livre da invenção patenteada para fins de ensaios ou experiências necessários à aprovação de medicamentos genéricos.

    Por outro lado, dado que a procura do sentido e alcance, no caso concreto, desta utilização livre tem lugar por ocasião de uma ação de infração da patente

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    (ou CCP), deverá, em primeiro lugar, atender-se às normas de conflitos do direito internacional privado da União Europeia 11, aí onde se destaca o Regulamento (CE) n.º 864/2007, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11/07/2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais 12. É verdade, porém, que o artigo 27.º do Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes prevê esta utilização livre, consagrando-a, no seu texto, como uma limitação ao direito de exclusivo decorrente de uma patente europeia com efeito unitário 13. Contudo, não só este preceito não esclarece com suficiente clareza e densidade as respostas às múltiplas questões postuladas pela aplicação desta utilização livre 14, como ele não se aplica relativamente aos titulares de patentes que tenham exercido o optout antes do termo do período transitório de (sete anos de) aplicação do referido

    Acordo 15 ou deduzam acções de infração perante os tribunais nacionais durante a pendência desse período transitório 16, 17.

    O caso objecto da presente análise, que submetido ao Tribunal de Justiça da União Europeia, é o primeiro exemplo desta tentativa de construção de padrões mínimos harmonizadores. Está em causa a aplicação desta utilização livre (Roche-Bolar) aos fornecimentos (ofertas, promoção, importação e venda) de substâncias activas (bem como os seus excipientes e/ou adjuvantes) que integram a composição de medicamentos de referência às empresas, as quais, não as produzindo nas suas próprias...

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