O constitucionalismo monárquico português. Breve síntese

AutorAntonio Manuel Hespanha
Páginas477-526

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I O pré-constitucionalismo

Num decreto1 de 31.3.1778, a rainha D. Maria I – tendo em conta que a felicidade das nações não podia conseguir-se sem um entendimento claro, certo e indubitável das leis, cuja inteligência se encontraria obscurecida pela sua multiplicidade e obsolescência - decidia criar uma Junta de ministros para “examinar a inúmera, dispersa e extravagante legislação que até hoje se tem observado, mas também a que compõe o corpo das Ordenações do Reino”, recompondo-a sob a forma de um Novo Código 2. Nisto, a Rainha seguia a doutrina, então dominante, da necessidade de redução e sistematização do corpo legislativo, além de alinhar com outros reinos em que existiam idênticas preocupações e em que projetos semelhantes começavam a ser ventilados (Toscana, Sardenha, Áustria e Prússia).

Embora as Ordenações não tivessem muito que ver com o que hoje entendemos ser uma constituição 3, o facto é que, em certos aspectos, elas eram consideradas como uma “lei fundamental”, na medida em que, por exemplo, não podiam ser revogadas ou dispensadas sem uma expressa menção. Foi talvez por isto – e também porque a ideia andava no ar – que a questão da definição, num acto legislativo escrito, das “Leis fundamentais do Reino” foi levantada pelos juristas que compunham a Junta do Novo Código.

Um deles era António Ribeiro dos Santos, que – no próprio ano em que em França rebentava a Revolução – despoletou em Portugal uma dura discussão sobre o conteúdo das leis fundamentais com o mais notório dos jurisconsultos portugueses de então, Pascoal José de Melo Freire, a quem tinha sido entregue a redação do Projecto do Livro I - sobre o “direito público” - do Novo Código 4. Para ele, o “direito público nacional”, que devia ser objeto de codificação, dividia-se em dois ramos. Um deles era o das “Leis fundamentais

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ou primordiais do Estado”, produto de uma convenção tácita ou expressa (“leis do reino”, “constituição fundamental”); o outro ramo era o das “leis públicas civis”, emanadas do soberano (“leis do rei”, “Estado público da Nação”). Por isso, o conteúdo deste livro II do Novo Código sobre as leis e o costume, devia ser um de dois. Ou abrangia o direito público constitucional e, então, devia conter: (i) a forma suprema do governo (summum imperium); (ii) a ordem de sucessão da coroa; (iii) a forma de exercício dos direitos do soberano no direito particular português; (iv) o sistema da administração pública; (v) os direitos e deveres dos particulares relativamente ao príncipe; (vi) os privilégios das ordens que constituíam o Estado; (vii) o estatuto das cortes; (viii) o direito da fazenda pública; (ix) as matérias de interesse público, como a população, a religião, a educação, a polícia, etc.. (ibid., “Exame do plano”, 6). Ou então, se no Código se decidisse não incluir este direito constitucional, não devia tão pouco haver qualquer referência às leis fundamentais (ibid., “Notas ao título dos direitos reais” [e seguintes], p. 72).

A réplica de Melo Freire 5 representa a linha dura do despotismo iluminista. Daí que a polémica entre ambos resuma bem o fundamental das posições constitucionalistas portuguesas no próprio ano em que se dava a Revolução em França; ou seja, numa época em que, tanto o corporativismo tradicional, como o providencialismo puro (ou jus-divinismo), já ofereciam poucos atrativos intelectuais a uma geração cultural racionalista e já bastante laicizada.

Em virtude da sua heterodoxia – ainda mais crítica com o despoletar dos acontecimentos em França – a posição de Ribeiro dos Santos permaneceu subalterna. As suas Notas não foram publicadas senão nos meados do séc.
XIX. Contudo, a ala reformista do regime foi-se tornando cada vez mais influente nos círculos académicos e, mesmo, governamentais, sendo responsável por vários projetos de reformas políticas, abortados ou não 6.

Em contrapartida, as opiniões de Melo Freire continuaram a ser as oficiais, moldando a cultura universitária de várias gerações de estudantes de direito. No entanto, também Melo Freire abria, num plano fundamentalmente teórico, para outros horizontes, dominados pelo contratualismo e pelo racionalismo, típicos da teoria constitucional do Polizeistaat 7: receção dos princípios do direito público universal, subordinação da Igreja ao Estado, antifeudalismo, anticorporativismo, etc.. Por isso é que, como se dirá, a sua influência vai ser, paradoxalmente, fundadora da cultura jurídica liberal.

O Projecto do Novo Código falhou, de momento; apenas tendo sido aprovado, anos depois, um Código penal militar (aqui, também, em virtude o do

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espírito reformista que o Conde reinante de Schaumburg-Lippe tinha introduzido na organização militar portuguesa).

As invasões francesas marcam o momento seguinte em que uma reforma constitucional andou no ar.

Na alocução da Comissão enviada a cumprimentar Napoleão a Baiona (Abril de 1808) 8 alude-se ao pedido de um rei e de uma constituição para o reino, garantindo a sua independência em relação a Espanha 9. Entretanto, um grupo de influentes - de que fazia parte Ricardo Raimundo Nogueira, jurista cuja influência se irá manter nas décadas seguintes - induz o Juiz do Povo de Lisboa a apresentar à Junta dos Três Estados - uma instituição criada depois da Restauração para gerir as contribuições militares, mas a que agora, juntamente com a Câmara de Lisboa, é reconhecida alguma legitimidade “representativa” - uma “súplica” dirigida a Napoleão, contendo as principais reivindicações políticas do reino. Nela se pede “uma constituição e um rei constitucional” 10.

Quanto a este último, precisava-se “que seja príncipe de sangue da vossa real família”. Quanto à constituição, a súplica de 1808 pedia “que fosse em tudo semelhante à que Vossa Majestade Imperial e Real houve por bem outorgar ao Grão-Ducado de Varsóvia, com a mínima diferença de que os representantes da nação sejam eleitos pelas câmaras municipais a fim de nos conformarmos com os nossos antigos usos”.

Que constituição era esta, a de Varsóvia ? Os peticionários salientavam alguns dos seus traços.

Do ponto de vista das relações entre o Estado e a Igreja, adotar-se-ia uma religião de Estado – a católica apostólica -, com a adoção da concordata celebrada entre Napoleão e a Santa Sé que eliminava anteriores fontes de atrito entre os poderes espiritual e temporal; porém, era garantida a liberdade religiosa e de culto público 11, uma solução que teria sido mais avançada do que aquela que viria a dominar todo o período monárquico-constitucional. A igualdade perante a lei seria instituída, pondo fim aos privilégios estamentais 12; o que se efetivaria, nomeadamente, pela proposta de adoção

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do Código de Napoleão 13. Instituir-se-ia a separação dos três poderes. O legislativo estaria a cargo de duas câmaras 14, cujos membros seriam eleitos, “de acordo com os nossos antigos usos e costumes”, pelas câmaras municipais 15, e que exerceria as suas funções “com a concorrência da autoridade legislativa” 16. O executivo cabia, no topo, ao rei 17. Que, porém, no seu desempenho, seria assistido por um Conselho de Estado, composto por “ministros responsáveis”. Na Constituição de Varsóvia, o Conselho de Estado (ministério) dirimiria os conflitos de competência entre jurisdição e administração, funcionando ainda como Cour de Cassation, como tribunal de contencioso administrativo e como foro especial dos agentes da administração.

Quanto aos níveis administrativos do executivo, enfatiza-se a necessidade de reforma da administração e do funcionalismo. A administração seria objeto de uma reforma de cunho racionalizador, segundo o modelo francês (nomeadamente, fazendo coincidir as divisões civis com as eclesiásticas) 18. O número de funcionários devia diminuir, prevendo-se ainda a reafirmação do princípio do indigenato no provimento dos cargos públicos 19, combinado com a adoção do sistema do mérito (“que melhor os [empregos] merecerem”). Consagrava-se a independência do poder judicial 20, melhorando o seu funcionamento (“sentenças proferidas com justiça, publicidade e prontidão”), objetivo que aparece ligado à já referida adoção do Código de Napoleão 21. Previa-se um especial cuidado com a instrução pública, criando um ministério próprio para tal fim 22; instituía-se a liberdade de imprensa”; pediam-se medidas de desamortização, a proporcionalidade dos impostos e a consolidação e garantia da dívida pública 23.

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O texto constitucional escolhido como modelo 24, a Constituição do GrãoDucado de Varsóvia, era, então, a mais recente das constituições dos Estados satélites da França napoleónica, todas elas inspiradas na Constituição francesa do Ano VIII (13.12.1799); sendo essa, por ventura, a causa determinante da escolha 25.

O Projecto de súplica não teve seguimento, por não se adequar à política pessoal de Junot, mas é revelador das ideias constitucionalistas no princípio do século XIX.

II A revolução constitucionalista de 1820 e as bases de 1821

A 24 de Agosto de 1824, na sequência de um movimento militar, apoiado por um grupo de civis pertencentes à burguesia ilustrada portuense, é proclamada a Junta de Governo do Porto, encarregada de convocar Cortes para se fazer uma constituição que, mantendo a religião e a dinastia, remediasse os males do Reino. O governo acede (Instruções de 31.10), sendo obrigado por um pronunciamento militar a adotar um sistema direto de sufrágio, como o da Constituição de Cádis (arts. 27 a 103; Instruções de 22.11). As eleições tiveram lugar em Dezembro de 1820 (no ultramar, prolongaram-se até inícios de 1822).

O Projecto de Bases da Constituição 26 é promulgado por dec. de 9.3.1821...

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